Blogs do milênio passado: uma vida escrevendo na internet

Gabriela Ventura
Mulheres que Escrevem
6 min readAug 14, 2017
Fazer maratona de Arquivo X nos anos 10 é acompanhar a evolução dos computadores pessoais através de Dana Scully

Quando a Estela me convidou para falar no evento Mulheres que escrevem na Internet (tema do mês de agosto do encontro presencial do projeto Mulheres que Escrevem, no Rio de Janeiro), minha primeira reação foi me perguntar se eu tinha como contribuir para o debate, já que nunca escrevi profissionalmente para a internet. Mas logo deixei a lógica utilitarista de lado, e argumentei comigo mesma que meu primeiro blog data não apenas do século, mas do milênio passado — o glorioso ano de 1999. E que mal consigo lembrar do que era a minha vida antes de escrever para a internet. Então sim, talvez eu tivesse uma ou duas coisas a dizer a respeito. E foi por isso que aceitei o convite com alegria.

A internet (e nossa relação com ela) mudou muito, é claro. Hoje virou lugar comum falar da dependência que desenvolvemos às comodidades que os smartphones propiciam— mensagens instantâneas, mapas, redes sociais, aplicativos de bancos, comida e compras — e como a nossa necessidade de estarmos conectados 24h gera todo um novo corolário de neuroses.

Mas nos anos 90 o cenário era outro: os primeiros computadores pessoais entravam nas nossas casas (o meu foi um 386, que sequer era meu de verdade, mas um empréstimo do escritório da minha mãe) as impressoras eram matriciais, e eu, como a maior parte da minha geração, só podia pensar em entrar na internet (discada) após a meia noite, para aproveitar o pulso único até as seis da manhã. As interações — e principalmente os downloads — tinham outra velocidade. Eu quase sinto falta dos sons daquela época — não fosse o perrengue, havia um quê de mundo novo, uma espécie de salvação que demorava para carregar, mas que estava lá.

Quem nunca jogou a versão de Prince of Persia que rodava no DOS não sabe o que perdeu (horas de frustração)

Foi nas madrugadas do final dos anos 90 que eu descobri que o mundo era maior do que o meu bairro. Nascida e criada numa cidade do interior do Rio, fui a proverbial "garota esquisita" da escola: sempre às voltas com muitos livros, pouco vaidosa, com interesses que meus amigos à época não conseguiam entender. Mas não há nada como achar a própria turma. O discurso de que é necessário desenvolver habilidades sociais é muito bonito, desde que você não seja aquela criança esquisita que até quer fazer amizade, mas que todas as outras evitam convidar para as festinhas de aniversário. Qual não foi então a minha surpresa ao perceber que havia um sem número de pessoas no mundo com interesses parecidos com os meus? Mergulhei de cabeça na ICQ, no Napster (e programas semelhantes, nas salas de bate papo do mIRC, em fóruns, fotologs, creepastas, listas de e-mails e sites de fanfics de Arquivo X. (Algum fã fanfiqueiro se lembra do Gossamer? Esses dias descobri, não sem espanto, que o site resiste.)

Abri meu primeiro blog em 1999, o primeiro de muitos. Contei minha vida e meus dramas adolescentes para outros adolescentes desconhecidos que tinham tão pouco juízo como eu. Usando um pseudônimo, escrevi sobre o avanço da doença do meu pai e a morte dele em 2002. Documentei (em textos há muito perdidos em endereços apagados por pura vergonha) minhas primeiras inquietações a respeito da faculdade, da mudança de cidade, dos novos amigos que entraram na minha vida. Escrevi textos amorosos e eróticos para marcar minhas primeiras experiências afetivas, e criei espaços para desabafar quando elas deram errado. Resenhei livros, filmes e peças de teatro.

Aprendi mais com a prática da escrita na internet do que com a produção textual acadêmica propriamente dita, embora nunca tenha conseguido desembaraçar completamente uma da outra (e hoje sequer acho que deva). Escrever bobagens me ajudava a desembrutecer do jargão teórico, ao mesmo tempo em que as sugestões que eu recebi no Twitter foram fundamentais para que eu terminasse de escrever minha tese de doutorado. Desisti por fim dos blogs e migrei para o Medium, para a minha newsletter, e sei que vou mudar de meios enquanto continuar escrevendo, porque a plataforma importa menos do que esse sentimento libertador de encontrar na internet uma janela para o mundo, e pessoas dispostas à interlocução.

Tututututututu-chiado-peeeeeeeeein-peeeeein-ding-dong-ding-dong

Fiel ao espírito do tempo — e numa tentativa não exatamente convincente de buzzfeedizar esse texto — segue uma lista de Coisas que Aprendi Após Uma Quase Vida Inteira Escrevendo na Internet:

  1. Não é sobre ser lido — é sobre manter-se escrevendo. E fazer parte, mesmo que perifericamente, de uma construção coletiva. Seja lá qual for a sua cachaça (por aqui a editoria é literatura, cinema, jornalismo cultural, feminismo e divulgação científica), escrever junto com outros é uma forma de pensar a respeito dos temas que te instigam, e de assegurar uma pluralidade de vozes que estão ao alcance de um clique.
  2. Todo texto acaba encontrando seu público. O feedback pode demorar, mas uma hora ele vem. Se eu posso dar uma sugestão, é a de não se apegar ao F5. Para resultados imediatos poste uma foto de seu pet no Instagram.
  3. Mas "público" é um conceito relativo pra caramba. Ao longo dos anos um punhado de textos meus viralizaram. No que isso mudou a minha vida, minha relação com a escrita, meu status? Isso mesmo: mudou altos nada. Aquela história sobre como ser popular na internet é tipo ser rico no Banco Imobiliário vale também para likes, coraçõezinhos e compartilhamentos de textos — isso se você não faz da escrita o seu ganha pão, e a maior parte de nós não o faz, ao menos não diretamente. Em um certo sentido, o caráter colaborativo e não-hierárquico da internet nos coloca em uma posição de desvalorização da autoria. Isso não é necessariamente ruim, é só algo que acontece (aqui eu poderia começar com as minhas analogias entre Internet e Idade Média, mas isso é assunto para outro texto — se alguém estiver interessado me cobre depois). Várias pessoas que leram algo que viralizou jamais voltaram a ler outra coisa minha, porque nem todo mundo está preocupado com o nomezinho que assina o que aparece na tela — e tudo bem. Da mesma forma, tem gente que me acompanha desde o Quinas e Cantos (um blog falecidíssimo que mantive durante uns 8 anos), ou ainda antes disso.
  4. Inclusive, popularidade nem sempre é uma coisa boa. Se você está escrevendo e publicando, supõe-se que gostaria de ser lido. Mas aí é que tá: isso não significa ser lido por todo mundo. O problema às vezes não reside exatamente na sua invisibilidade como autor, mas numa visibilidade não desejada. Como todo mundo que escreve para a internet, popularidade nem sempre é uma parada bacana: pode ser criadouro de trolls, pode gerar backlash, pode ser que você desperte a ira de um grupo de pessoas sem querer, às vezes só por ser uma mulher com uma opinião na internet, AI MEU DEUS PEGUEM AS TOCHAS E OS FORCADOS. Acontece. Direto. Uma das vantagens da florescente cultura das newsletters está justamente no caráter restritivo da proposta: em teoria a pessoa que assina o faz porque está interessada no que eu tenho a escrever. (Inclusive o link para assinar é esse aqui) A internet tem gente demais, ideias demais, textos demais: como não há curadoria, cabe a nós a tarefa de estabelecer conexões com nossos autores e também com nossos leitores favoritos.
  5. O melhor de tudo é o diálogo. Escrever para a internet me rendeu (e continua me rendendo) uma vida intelectual rica e prazerosa, a qual eu provavelmente não teria acesso de outra forma. A janela que se abriu pra mim no final dos anos 90 moldou de muitas formas a mulher que sou hoje, a ponto de eu não conseguir imaginar o que seria de mim numa linha do tempo alternativa. Não só escrever, é claro, mas viver na internet. Em uma ponta dessa história estão todas as interlocuções, críticas, projetos que foram e que serão e feedback de leitores. Na outra estão justamente as minhas próprias interlocuções, críticas, apoios a projetos e feedback como leitora. A roda de criação de conteúdo continua girando, e é assim vamos construindo comunidades, pontes, espaços de contato — possibilidades. A internet, apesar dos pesares, continua sendo, para mim, o espaço das possibilidades. Por isso continuo escrevendo. Desde o milênio passando, e até quando for possível.

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