ilustração do instagram @andrea.marks

Capa de Botijão

Pode anotar. Se te fodeu no trânsito é porque põe capa no botijão de gás

RIDÍCULA
6 min readSep 12, 2018

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Rua de mão dupla eu gosto. Você vai como volta. Volta como vai. Não tem o que pensar muito. Não tem que se perder no turbilhão de carros. Todos querendo avançar em cima de você, só porque tem mais rodas. Só porque estão embrulhados pra viagem em vidro e metal. Prontos pra chegar em casa, quentinhos. Eu, se tivesse carro, ia respeitar motocicleta. Ia avançar só nos panacões de bicicleta, porque aí eles merecem. Todos cheios de frescura, ai, a faixa é minha, moto não pode. Babacas.

A próxima entrega é pro outro lado, mas quem resiste voltar por uma rua de mão dupla? O caminho conhecido me acalma. Silencio a mulher irritante do app, toda hora querendo que eu vá pra outro lugar. Poucos metros depois, freio com tudo, boto o pé no chão. Um energúmeno resolveu fazer balão, aqui, no meio da quadra. Quase que me deita a moto. Espio o vidro insufilmado do carro, não dá pra ver direito a velha, só pode ser uma velha, sempre é. Pode anotar. Se te fodeu no trânsito é porque põe capa no botijão de gás. Ainda levou uma eternidade pra manobrar, puta que lhe pariu. Cada minuto que passa aumenta a chance de eu ter que arcar com o preço da esfiha do cliente. Sua esfiha em 28 minutos ou seu dinheiro de volta. Bonito, né? O serviço da lanchonete? Pra sua comida chegar rapidinho? Quem paga essa merda sou eu. Então vai, minha senhora, tira esta porra metálica do meio da rua, que a caixa de entrega tá pesada, filho da puta deve ter pedido beirute com tudo dentro, nem pra pedir coisa barata. O jeito é subir na calçada, arrancar por ali mesmo, desviar do poste, cair de volta no asfalto, Obrigado, Jesus. Mais sete quadras pra próxima entrega. Horário de pico. A rua toda constipada de carro, quase não dá pra passar. Voa um retrovisor. Começa a dor no joelho junto com o buzinaço do dono. Povo acha que a gente faz de propósito. Ah, sim, tudo que eu queria. Detonar meu joelho. O sinal fecha, toca botar o pé no chão. Não me leve a mal, sou louco pela bichinha, mas onde se viu uma máquina que consegue acelerar a 200 por hora não parar de pé sozinha? Agora tamos aí, joelho aumentando e diminuindo de dor, servindo de pilastra pra um pedação de metal. Não tinha um japonês pra resolver isso?

Chego na rua da entrega, ainda com uns minutos de folga. Outro Prédio Miami sei lá o quê. Faço muita entrega em prédio chamado Miami. Em Miami se come muita esfiha, pode crer. Levo uma bofetada do frio ao tirar o capacete. A caixa de comida deixa vazar calor pelo papelão. Toco o interfone e um porteiro me olha com cara de bode enquanto anuncio o número do apartamento. Ligo a maquininha do cartão para agilizar. Nada do ser humano descer. Devia estar de cueca, coçando a bunda. Faço um gesto de sobrancelhas para o porteiro como quem diz Que Merda e ele me responde juntando os lábios dentro da boca e inclinando a cabeça no que traduzo como Realmente É Uma Bela Merda Mas Não Há Nada Que Eu Possa Fazer. Eu e os porteiros temos nossa língua própria, nos entendemos muito bem. Enfim desce o homem do 32a, com o cartão de crédito na mão e chinelos com meias. Tem aquelas bochechas meio dependuradas de gente velha. Deve dirigir mal pra cacete. Pega a maquininha através do buraco na grade do prédio, um recorte feito na medida exata para que a esfiha possa entrar e eu não. Erra duas vezes a senha do cartão. Pede a segunda via. O que o sujeito vai fazer com essa droga de papelzinho? Um rolo de papel higiênico? Passo a caixa de comida pelo buraco e começo a dar o fora, até que escuto um bufo: tá tudo amassado. É o 32a, com a caixa já aberta e virada pra mim. Sacode as esfihas, que parecem estar bem normais, menos uma ou duas que estão por cima das outras. Murmuro um Me Desculpe, me viro para a rua com pressa, afinal faltavam só uns 17 minutos para acabar o prazo da próxima entrega. Da segurança das suas grades, ele grita: isso é inaceitável! Vou reclamar no restaurante! É o que me faltava. O Nilson me mata. Coloco de volta o capacete, torcendo por uma diarreia que faça o edifício Miami sei lá o quê tremer, pra ver se ele reclama da cozinha em vez das esfihas viradas.

Eu deveria estar indo para o Sumaré. Não consigo me obrigar a fazer o caminho. Volto por onde vim. O conforto de saber qual rua vem depois de que esquina. Os prédios familiares, vistos há apenas alguns minutos. É como reverter o tempo. Me dou conta que os ombros estavam altos, duros, quase nas orelhas. Quando vejo, estou de volta atrás da lanchonete, de frente pra boca de onde saem as caixas de comida e os pedidos. Abro de forma automática o bagageiro e me lembro que ainda não entreguei a última caixa. Faltam 11 minutos. Bairrinho filho da puta, Sumaré. Feito sem régua, ideal pra se perder. Só ladeira e rua torta. Aumento o volume do celular, para escutar o que a mulher do aplicativo tem a dizer. Vire. à. direita. em. rua. Abelardo. É uma ruela minúscula escondida entre árvores e eu passo reto. Caio noutra rua, cheia de carro vindo a toda. A mulher do app recalcula a rota. Aproveito o sinal fechado para olhar. A linha azul na tela dá uma volta que não faz sentido nenhum. Previsão de chegada: 9 minutos. Maldita puta eletrônica. Chego ao prédio engasgando, com um minuto de folga para não ter que pagar o lanche do barão. Meto o dedo no botão do interfone. Procuro a guarita com os olhos: ninguém. Vê se isso é hora para porteiro ir mijar. Continuo a torturar o botão, na esperança que alguém ouça, sei lá, o porteiro de dentro do banheiro, ou deus. Torço para que o cliente não esteja contando os minutos. Tem gente que não faz questão de comida grátis. Esse fiozinho de esperança é cortado pelo toque agudo de uma mensagem de whatsapp.

< Cleinte da R. Itobi tah reclamando qeu pedd nao chegou. Esse eh por tua conta.
E duas figurinhas de cocô sorrindo.

Daí sim aparece o porteiro, limpando a mão molhada na calça social preta, me nota com a cara enfiada entre duas barras de ferro da porta gradeada e completa o percurso correndo um trotezinho. Coça a orelha como quem diz Mal Aê e eu encaro bem sério como quem diz Mal Aê É o Caralho e ele deve ter entendido porque depressa atende e chama o cliente do 101. É uma mina magra, de moletom babado, que devia estar morta de fome, já com a chave na porta de tão rápido que apareceu. A proprietária mulambenta e o porteiro de calça social. Quando foi que se vestir direito virou coisa de pobre? De distraído, de automático, estava já com a máquina do cartão na mão. A moça me atropelou com os olhos. Cê Acha Que Eu Vou Pagar? Você Não Viu Que Horas São? O rosto esquenta e coloco o pacote, já meio morno no buraco da porta.

Quero o truque de voltar no tempo. Duro mesmo é lembrar o caminho cheio de quebradas que a puta eletrônica mandou. Vira aqui. Dobra ali. Rotatória. E a via principal, grande. Contramão. Foda-se. Senão não é o mesmo caminho. Cortar por entre os carros que vem na outra direção é engraçado. Você vê os motoristas de frente. Digo com as sobrancelhas E Aí, Vai Me Atropelar? Eles não entendem. Não sei se porque não são porteiros ou porque eu estou de capacete. Eles vão abrindo caminho, se jogando pro lado. Menos um monza azul marinho que continua certeiro, em frente, sem vacilar. Quer apostar? O capô me atinge e quando o capacete bate contra o vidro fumê eu confirmo o que já sabia. Era a porra de uma velha.

Para ouvir o podcast que gravamos com Nathalie Lourenço, clique aqui!

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Esse conto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só debater questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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RIDÍCULA

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco