carta para a namorada que ainda não foi espancada

eu vou te contar uma história sobre você mesma.

Débora Nisenbaum
Mulheres que Escrevem

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ela começa algum tempo atrás. e a sua vida vai mudar totalmente depois disso. é algo pelo qual eu honestamente desejava que você nunca passasse. na verdade, eu era até um tanto arrogante e dizia com certeza que nunca iria acontecer. mas você entrou, de novo, pra mais uma estatística. e até hoje não vai conseguir entender como isso aconteceu, porque tudo que fez foi amá-lo incondicionalmente.

são mais ou menos umas 3 da manhã de um dia que não me recordo. você está agachada, encolhida, sua cabeça contra a janela, apoiando a linha do cabelo no vidro gelado. seu rosto está manchado de choro, a dor é tão intensa que te deixa tonta.
“o que você está fazendo?”
“estou colocando contra alguma coisa fria, pra diminuir a dor”
“tsc”. ele vai até você, pega sua cabeça nas mãos e examina o calombo na sua testa contra a luz. seus lábios estão pressionados com desprezo. te censura com os olhos como se você fosse uma criança de cinco anos que desobedeceu o pai e acabou se machucando.
mas você não se machucou.
foi ele.
ele te deu um soco na cabeça.
essa não é a primeira vez que ele te bate.

quando vocês começaram a namorar, era um amor de outro mundo. a sintonia era fantástica, a química era algo que você nunca sentiu na vida. ele era sensacional: atencioso, carinhoso, presente, amável, engraçado, sexy. sua família adorava ele. vocês dois sorriam com a leveza de quem encontrou um amor pra vida toda.

devagar, a cena vai mudando. uma hora você quer sair com os amigos e ele te pede pra ficar. “tô com muita saudade de você”. aí você fica. depois ele pede que você corte contato com um amigo teu. “não gosto da energia dele. sou muito sensível aos outros, sabe? se você fosse espiritualista como eu, entenderia”. aí… bom, você corta o amigo. depois outro. depois mais outros 3. “essa gente não te faz bem”, ele diz.

eventualmente, você começa a ouvir que seu gosto musical não presta. que não entende de tatuagem. das suas preferências literárias até sua crença sobre a gênese do universo, você está errada. mas, bom, ele fala as coisas com tanta convicção e tem tanta experiência de vida que talvez ele esteja mesmo certo sobre as coisas. ele é mais velho, né.

quando desabafa sobre sua depressão e sua ansiedade, ele diz que você é doente porque quer. que você não faz a menor ideia do que é sofrer e é uma pirralha mimada. materialista. te põe pra baixo de um jeito que você se pergunta se ele consegue discernir entre amor e ódio. olha, a essa altura ele já ameaçou te bater, mas você ignorou. afinal de contas… ele não fez, né? deve ter sido algo que disse num momento de raiva. além disso ele jurou que nunca te encostaria um dedo.

num dado momento, você está completamente isolada. por acreditar que ele sempre sabe o melhor caminho pra tudo (e também pra evitar as crises de fúria dele), você largou emprego, família, amigos, todas as atividades que gostava. ele vai te pressionar, diminuir, negligenciar, torturar. ele tem rituais, sabe. sempre que ficar bravo, vai te xingar de todos os palavrões mais misóginos que você possa imaginar. vai te prender dentro do quarto e passar horas (geralmente de três a cinco) monologando sobre como você é uma merda de pessoa. e, lentamente, você vai acreditando nisso.

um dia, você resolve falar com a mãe dele sobre essas coisas porque, bom, pode até ser coisa da sua cabeça, mas às vezes isso tudo te deixa muito preocupada. ela diz que ele não tem culpa se quando te conheceu você era tão… sexualmente ativa, né? feio isso pra mulher. provavelmente é por isso que ele sempre te xinga. e sobre as ameaças, ele realmente só está nervoso. sempre foi pavio curto, você tem que aprender a lidar com isso porque ele é um homem maravilhoso. e se ele não fez nada, não há motivo pra se preocupar.

a situação vai escalar até o momento em que o abuso psicológico e emocional vai passar a dividir espaço com a violência física. veja, como eu disse, nunca achei que fosse acontecer contigo. mas aconteceu.

a primeira vez você não vai esquecer. estão brigando de novo. sempre é um motivo imbecil e irrelevante que se transforma em uma bola de neve de rancor. e é sempre você, sempre sua culpa. ele vai te diminuir, te manipular, te xingar. vagabunda, vadia, sua puta arrombada, sua desgraçada. seu verme. você não presta nem pra se matar. fraca. imbecil. ele sempre ameaça te deixar. arruma a mochila, troca de roupa. você vai segurá-lo pra que ele não saia de casa e não te deixe só. chorosa, murmurando coisas indistintas, implorando, morrendo de medo de ser abandonada. vai dizer que faz tudo por ele. ele vai te empurrar, as duas mãos abertas contra o seu peito. você vai ser lançada por uma curta distância, aterrissando na sua coxa direita. no dia seguinte, não vai nem conseguir sentar pra fazer xixi. vai olhar no espelho depois do banho e ver dois hematomas perto da sua bunda. são os primeiros. o início da constelação de marcas que ele vai te dar.

uns dois dias depois, enquanto vocês fazem alguns reparos no quintal, ele vai brigar de novo contigo. dizer que você tem o dom de fazer todos te odiarem. você é impossível de amar. nunca vai se casar com ninguém. sua raiva transborda e você retruca qualquer coisa sobre ele ter traído a ex-mulher e não ter moral pra falar essas coisas. ele vai te olhar, colérico, e acertar sua coxa com uma serra de cano. a dor da pancada do metal vai queimar sua perna. você comprime com as duas mãos o lugar, tentando dissipar a listra roxa que rapidamente se forma ali, o sangue subindo para a superfície e tingindo sua pele enquanto você chora. você passa a próxima semana com vergonha e rezando pra que ninguém pergunte sobre a faixa vermelha na sua perna direita. e sobre o hematoma do chute que ele te deu uma outra hora, na mesma perna.

depois disso, você vai perder a conta. vai lembrar de alguns mais doloridos. um safanão na coxa que deixou uma mancha maior que uma bola de tênis, um soco na costela que não te deixou dormir de lado por dias. a tarde em que ele te pegou pelo pescoço e te arremessou na cama. quando cuspiu em você e disse pra ficar longe dele, sua puta desgraçada. ele diz que não te bate no rosto porque vai estragar sua beleza. mas você é uma fedelha que merecia que ele te amarrasse e “te desse uma surra de vara até você ficar mole”. “eu devia te quebrar inteira pra você aprender a ser gente”.

seu cotidiano vai ser medo. sua barriga vai doer quando entrar no quarto, especialmente quando ele estiver bravo. ele sempre vai te trancar lá dentro, junto com ele, e não vai te deixar sair. ele adora aqueles monólogos. vai te colocar contra si mesma. quando você menos suspeitar, vai te fazer duvidar completamente do seu juízo. você vai se tornar um animal arredio e apático. olheiras vão afundar o seu rosto e você vai fugir dos espelhos, com vergonha de encarar o que sobrou da mulher que era.

numa tarde nublada depois de uma briga, ele te encara e diz que precisa conversar. “eu vou matar você”, ele diz. “e o pior é que vou me arrepender depois”.

então, quando você também perder as contas de quantas vezes ele ameaçou sua vida, algum fiapo de autopreservação que ainda existe aí dentro vai te fazer querer ir embora. e não vai ser simples. sempre que você propõe que se separem, ele fica totalmente fora de si. ameaça quebrar suas coisas. seu notebook, seu celular, sua câmera. te tranca de novo dentro do quarto o dia inteiro, ouvindo ele dizer o quão errada, imbecil e torpe você é, sua vagabunda desgraçada. “vai pagar por esse tempo todo que eu perdi com você. vai sair daqui, sim, mas vai sair toda quebrada. e pode me denunciar depois. vou preso se precisar. mas assim que sair, eu vou atrás de você. e se não te achar, sei onde mora seu pai, sua avó. experimenta.”

você vai perder noção do tempo. os dias vão passar e você não se dará conta. de madrugada você chora, de tristeza, de dor, de horror, de frustração por não conseguir dormir e funcionar direito. não vai querer comer nem sair de casa. veja, você será a presa mais fácil do mundo. impotente, incapaz, infeliz. você já tem trabalho demais pra se reestruturar com os seus próprios problemas. ele não vai cuidar de você. tem dias que vai te trazer café na cama e te cobrir de beijos, tem sim. e nessas horas tudo vai parecer sensacional e ele vai iluminar seus olhos com a dedicação de um cara incrível. mas esse pó de pirlimpimpim não dura 48 horas. e se agora você é o amor da vida dele, a mulher mais incrível do mundo, amanhã vai ser a puta nojenta de novo. sua burra, não dá valor ao homem incrível que está do seu lado. “tem tanta mulher por aí que só queria um cara que cuidasse delas como eu cuido de você. que só quer servir um homem. ser mulher, ser fêmea. por que você não é assim?”. ele diz que você é uma imitação ruim de homem, com essas suas merdas feministas. “odeio mulher valente. você só me responde, me provoca. por isso bato em você”. “não me recorde que você é bissexual, eu morro de nojo quando lembro disso”.

olha, dessa vez, você não vai conseguir consertar esse cara. até porque, no presente momento, você não tem condições de cuidar nem de si mesma. e não é seu dever se desfazer pra que ele possa se ver inteiro. não é sua culpa que ele é um homem tão bosta que só tolera viver com uma mulher que exista a sombra dele.

aliás, você vai se sentir a filha da puta mais hipócrita desse mundo. porque você escreve sobre isso. sobre relações violentas e abusivas. já passou por poucas e boas, nesse sentido. mas não, você se achou muito gente grande, muito fodona, achou que podia com ele, né. você sempre ajudou seus parceiros a lidar com emoções, com masculinidade, com dinheiro, com família. mas não existe isso de ensinar alguém a amar. ele não te ama, ele quer te colocar numa forminha idealizada e fedendo a naftalina do que ele acha que é ser mulher. te afastou dos seus amigos, da sua família. fez tudo como diz o livro. chamou de louca, de desequilibrada. dá até vontade de bater palmas pra ele.

é óbvio que você precisa sair dessa situação, mas ele já se instalou de forma tão esmagadora dentro da sua cabeça que você muda de ideia todo dia. transforma a mais banal demonstração de afeto em um fio flagelado de esperança ao qual se agarra sem um pingo de pudor. constrói de novo, cuidadosamente, seu castelinho de cartas de expectativa, “agora ele vai melhorar”. “talvez se eu fizer mais isso, ele pare de brigar comigo”. “se fizer o que ele tá pedindo, vai ficar tudo bem”. e aí desiste de ir embora, uma, duas, três, quatro… ah, tantas vezes.

mesmo depois que, finalmente, você conseguir arrumar suas coisas e fugir, durante um intervalo de ausência dele, ainda estará contaminada por um monte de sentimentos bizarros e deturpados. você vai se desintoxicar disso como uma viciada em cocaína. enjoo, diarreia, dias sem comer, suor frio, choro, agonia, abstinência pura. é tudo que vai sobrar depois que ele abocanhar, mastigar e cuspir seu psicológico, seu emocional, sua autoestima, sua sanidade. sua cabeça parece ter passado por um Chernobyl. por todo lado emoções deformadas. você vai ouvir a voz da autossabotagem, ardilosa e depravada:

“ele era perfeito. você que é uma nojenta. olha só o que você jogou fora. vocês poderiam ser felizes se você não fosse tão insofrível”.
“tem certeza que não está mentindo pra todo mundo? quer dizer, ele te bateu sim, mas nem foi tão forte”.
“lembra da Fulana? o ex dela lhe quebrou o nariz e as costelas. isso que é ser agredida. o que você passou é frescura sua”.
“talvez realmente a vida seja assim mesmo. às vezes ele vai te dar uns tapas, mas, fora isso, ele é maravilhoso e poderia te fazer feliz. mas você acabou de torrar sua chance, né”.
“você só está se fazendo de vítima. porque é fraca e ridícula”.
“uma hora todo mundo vai descobrir essa sua farsa”.

esse vai ser o processo mais doloroso da sua vida. o sentimento absurdo de ter medo da pessoa que você ama vai te enlouquecer.

olha. já que isso tudo ainda não aconteceu, eu te peço, não permita. não vale a pena. por favor, tente fugir antes. sei que parece que vale, sei que parece que ele vai mudar e sei que você o ama com todas as suas forças. mas tente fugir disso quando ele brigar porque você fez carinho no cachorro do cara do prédio, dizendo que isso é falta de respeito porque “o cara ficou te olhando”. tente lembrar do quão errado é ele não te deixar falar com qualquer homem que não seja seu irmão e ter ciúme até dos familiares dele.

lembre-se de que ele tenta te mudar desde o dia em que chegou. nunca te quis como você é. nunca te quis livre. só te trouxe algemas tão lindas e bem adornadas que você se prendeu a elas, assim, só pra experimentar.
ouça as pessoas ao seu redor que dizem que ele te faz mal. cuide da sua saúde mental.
ouça aquela vozinha amordaçada pelo encanto dele que murmura que isso não vai dar certo.
por favor. não vá.

mas se for, lembre-se do caminho de volta. lembre que tudo que separa seus hematomas de um nariz quebrado é tempo. você já passou do meio do caminho.
todo mundo quer saber o que aconteceu com você.
e embora não acredite, do outro lado desse aquário de loucura, você ainda é amada.

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Débora Nisenbaum
Mulheres que Escrevem

Fotógrafa que escreve quando não cabe num frame. Dev em formação. Colaboradora na Ovelha www.ovelhamag.com