Carta para minha amiga escritora
Taís,
Sabe, tem uma coisa que sempre me incomodou nos filmes e livros produzidos pelos grandes homens das artes, esses que conhecemos tão bem, apesar de nossos mixed feelings sobre os livros e a estrutura da literatura. Nessas histórias, passam-se dias, semanas, tempos que são indiscutíveis para a narrativa. Os personagens amam ferozmente, correm, cavalgam, inventam mentiras, planos, raciocinam e matam, que seja. Nunca, porém, eles interrompem suas grandes sagas para comer ou lavar a louça. É como se não fosse preciso. Como se essas funções vitais da humanidade não coubessem a eles, mas sim a outras pessoas, aquelas devidamente escanteadas, humanas demais no sentido prático e, portanto, — por que não dar nome aos bois? — exploradas. As vidas invisíveis existem nas narrativas da ficção e do mundo real. Muitas vezes, inclusive, se interseccionam. Quem é capaz de imaginar William Faulkner cozinhando seu próprio arroz? Pouco provável.
Aí me vem Virginia Woolf e narra o jantar de uma mulher, a forma como o tempo passa enquanto ele come, e a improbabilidade me dá um estalo no peito. Aí me vem Carolina Maria de Jesus e narra o trabalho e o suor que definem não apenas a alimentação, mas a luta pelo alimento para si e os filhos. Você deve ter sentido isso também. Todo o estremecimento causado pela quebra no silêncio dos assuntos privados, das mulheres privadas. E hoje, para nós, como falar de amor sendo insubmissa? Como falar da cidade sendo ela tão hostil? Como falar do tempo se o nosso tempo é outro? Como dizer ao mundo o que escrevemos se qualquer motivo de orgulho é compreendido como arrogância? São perguntas que fazem parte dos nossos cotidianos, em meio à fervura da água no bule e à espera no ponto de ônibus, mas que são insuficientes para nos limitar.
Tudo isso para dizer que você não está falando para as paredes. Acho que chegou a hora de assumirmos para o mundo que nada disso é loucura nossa. Seu livro é lindo, ele é livro, é seu e está no mundo porque teve de estar. “Se eu escolhesse o esforço de uma arte que se ocupa do que é eterno, eu seria silêncio”, você disse no seu último e-mail, e eu quis chorar de volta. Às vezes a gente se pega conversando com as amigas preocupadas com o futuro e diz “você só tem vinte e poucos anos, amiga, vai lá se arriscar que dá tempo”. Por que para a literatura seria diferente?
Penso sobre meu blog ridículo que comecei aos catorze. Esses dias, um amigo musicou um poema que escrevi nessa época e me mandou por email. Eu adorei o que ele fez ali, mas simplesmente não me lembrava que aquelas palavras eram minhas. Joguei no google para ter certeza. Em seguida, penso sobre essa maluquice de ter publicado um livro impresso aos vinte anos, navegando entre picos de sentimentos e encarando o rosto jovem da minha própria coragem. Sinto orgulho, você me entende: eu fiz aquilo, sabe, vivi, senti, fiz, em um processo que está intrinsecamente colado à minha trajetória e tudo isso conta, tudo isso vale a pena. Aí sinto vergonha, parece uma grande besteira falar em trajetória aos vinte anos — porque na verdade parece uma grande besteira ter algo a dizer aos vinte anos, coisa de gente egocêntrica. Mas me basta ler as mulheres para voltar a ter certezas sobre a necessidade de dizer. Assim como você, eu não faço muita questão de ser eterna. Só quero estar em movimento o suficiente para ter história para contar e calor no coração nas noites de domingo, aquela angústia que mostra que a gente tá viva. Obrigada pela coragem de dizer essas linhas, esses mundos, essas vidas que, de perto ou de longe, são todas no fundo nossas.
Beijos da lenis
Publicado originalmente na newsletter Mulheres que Escrevem. Também disponível no blog.