Cinco poemas de Aline Miranda

tentei ser suave mas o corpo pesa

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
5 min readAug 31, 2017

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Cheguei a tempo de te ver acordar

gostava de dobrar a perna
ficar um pouco de lado e dobrar a perna
levantada
perna direita
coxa
em noventa graus
dormia assim com o travesseiro
qualquer outro pano enrolado
edredom
ou o corpo dela
pode deixar a perna, ela me disse
tentei ser suave
mas o corpo pesa
calor
aqueles corpos tranquilos
eu suava
mas mantinha
pelo contato
pelo toque
pela suavidade daquele momento
tão macio
meu corpo suava
eu sentia calor
mas queria permanecer encostada
minha coxa na barriga dela

Magdalena

Magdalena
tinha mirada forte
um olhar de contorno brilhante
delineado
esverdeado
que me penetrava.
Precisava forçar-me séria
para o sorriso não soltar-se
a trair-me.
Mas atrás do copo de cerveja
ela me olhava
(não havia mais ninguém a não
ser os homens velhos
que ainda restavam no bar
oferecendo-nos bebidas).
Ela chamava atenção
acentuada com um lenço
na cabeça
nenhum fio se rebelando
e o rosto forte
imponente.
Não havia nada na mesa
a não ser a cerveja.
Nenhuma distração.
Na rua parou um carro
de polícia
piscava luzes
_ Você parece boate,
ela disse.
E olhava fixo.
Eu,
que me achava tão segura
me via ali,
aberta, vulnerável.
Onde estariam meus anticorpos
que não trabalhavam?
Pára de me olhar assim,
eu dizia,
tapando-lhe levemente
os olhos
em brincadeira.
Ela sorria.
Eu a tocara.
(Em verdade já antes:
cheguei de táxi, chovia
eu molhada
ela me esperava
percebi-a de longe
— míope guarda trejeitos -
atravessamos a rua em seu guarda-chuva
seu braço longo abraçava meus ombros
ela tocara-me.
tremia.)
Jamais lembrarei as palavras ditas
saídas como vômito
de algodão-doce
sem filtro
feito flechas
tentando cegar aqueles olhos de capitu
que me petrificavam
e me botavam a falar
como doida
ou criança com sono,
quizás.
Fechou-se o bar.
E aquela rua tão movimentada
de dia!
Parecia viagem
parecia outra cidade.
Sempre gostei do frescor e silêncio
da noite.
As ruas com poças
ainda da chuva.
Sombras coloridas nos olhos
um homem passa
um carro passa
um rato passa
não há ninguém além da noite
já começo de amanhã.

da hipnose de atena

Eu prometo que não dormiria
por mais que meus olhos pesassem
não os fecharia.
eu ali, inerte, dura
resistindo aos apelos de Morfeu
deitada de frente a ti
a contemplar tua insônia
fazendo-lhe mil cafunés
você pedindo imobilidade
eu respirando o cheiro forte da química
do teu cabelo em minhas mãos
excita
seus olhos se fecham
mas tornam a abrir
num sorriso suave
que em silêncio diz
viu, não consigo dormir
pisco um dos olhos
eu assassina
você minha vítima.
mas sou eu a prisioneira do seu não-dormir.
quero a intimidade
da liberdade do teu corpo em sono.
ao prometer-lhe a novidade e o prazer
de ser a primeira a dormir
escravizei-me ao sonho teu.

TRAN(S)ÇA

Quero alguém para trançar-lhe os cabelos
Sentar na grama
Sou de terra
Terra.
Terra para os pés, firmeza
Terra para as mãos, carícia

Você deitada
Cabeça em meu colo
E eu a trançar-lhe com os dedos
Cada fio passando por minha pele
Arrepios
E o tempo perene
Embrenhando-a em mim.

do tremor da gruta fria

de súbito despertei
(de frio
de cerveja
de espumante
de imagens
de você)
os olhos PLÁ!
abriram
e aos segundos me situei
percebi-me quase nua
sem coberta
plainando ao lado do seu corpo em sono
(repito-me em versos)
tive receio que despertasses
(não sei o porquê).
horas antes eu não sentia-me em transe alcoólico
cabeça que não libera o corpo
de pronto.
despacito
levantei-me em blusa
meu peito frio
deixei aurora a dormir
não havia mais ninguém.
uma gata dormia na rede
outra acompanhou-me
até a geladeira
dois copos d’água
quatro mulheres em casa
cios e miados
silêncio e pão na janela
tentei distrair-me do álcool
agora tão tardiamente vivo
em mim.
voltei.
o quarto tão frio
você não parecia sentir
tentei a coberta
(notei que fechara as cortinas)
você dormia por cima dela
tão entregue
tão serena
que eu não podia acordá-la
(também por aquilo do receio).
sua presença
ainda que dormindo
me trazia insônia
mas eu precisava dormir
para não vê-la acordar.
consegui cobrir uma perna
a parte canhota do corpo tremia
pensei mudar de lado
mas o corpo cansado
aconchegou-se
delicadamente
ao seu
e dormiu.
dormiu que só o notei
quando do outro acordar
(ainda não último).
mexemo-nos
aurora abraçou-me
com braços e cabelos
proibindo movimentos ao meu corpo
notei que estávamos agora
cobertas
não sei de certo quando
você nos aqueceu
pena,
não vi.
senti seu perfume
inebriou-me e desacordou-me.
acordaria uma hora mais tarde
sentindo-lhe desperta.
com receio de abrir os olhos
e saber,
abri.
(ou então,
pois não me lembro,
eu levantara outra vez
e dera de comer às fêmeas,
à caça em terreno desconhecido,
e retornando à gruta
presenciei-lhe abrir os olhos)
bom dia!
sorri sem disfarces
sem máscaras alcoólicas
deitei ao seu lado
para que não levantasses
pois que era o grande momento
(in)esperado: e depois?
e respondi-lhe junto às cigarras:
oito e meia.

Aline Miranda, 32 anos, é poeta, escritora, oficineira. E feminista. É também virginiana com lua em aquário. Amante da natureza, das crianças, da palavra, dos afetos, dos encontros, dos cafés e vinhos, e dxs amantes. É também defensora da sensibilidade como força. Formada em Letras pela UFF, é Mestre em Literatura pela PUC-Rio com estudo em escrita de si na internet. Produz seus zines de poesia artesanalmente em sua máquina de escrever. Participa de saraus, debates, programas com e sobre poesia. Organiza e produz eventos culturais e de visibilidade lésbica (como o Isoporzinho das Sapatão e a Feira Velcrx, coletivamente). Vem desenvolvendo oficinas de poesia e datiloterapia na máquina de escrever que herdou de sua tia. Com sua Oficina trabalhou em centros culturais e eventos como na Caixa Cultural (em diálogo com a exposição do poeta Leminski) além de projetos em escolas e intervenções em espaços públicos. Escreve, datilografa e entrega Cartas de Amor por encomenda. De origem caiçara, mudou-se de Cabo Frio para o Rio de Janeiro, mas nasceu em Brasília. A estudo, viveu também em Niterói (RJ) e em Rosário, na Argentina. Espera pousar ainda em outros espaços. Não só espera — mas também realiza — acontecimentos.

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Estes poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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