Fotografia por Karine Xavier

Cinco poemas de “instruções para morder a palavra pássaro” de Assionara Souza

Querer e não haver por perto o que desperta o desejo

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
4 min readAug 24, 2022

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Outono

Um pequeno botão de rosa prestes a abrir suas pétalas
Ata-se ao ramo feito criança suspensa nos braços do pai
Talvez esse acontecimento envolva um tanto de dor
Como a parábola azul do céu envolve todo o jardim
Existe um amor em pleno estado de contemplação
A casa respira esse amor no fluxo contínuo do tempo
Os raios de sol com seus dedos longos gabaritam
O piso onde dormita um gato
A água fresca adentra a terra fecundando
A máxima raiz de plantinhas novas
Bicicletas a um canto, teclas de um piano:
A possibilidade de escolher entre o vinho e um café
Enquanto as horas crescem no estalar de fagulhas
De uma imaginária fogueira
Palavras e risos fraternos zumbem como abelhas
Atraídas pelo mel de uma noite quente
E depois que todos se forem, o silêncio pousará
Como um beijo sobre a memória das coisas

Das coisas que contêm brilho e mistério
Prefiro as nuvens
Embora não pretenda o extravio dos caminhos
Proveniente do hábito de esquecer
As urgências sólidas do chão
Extasiados de gozo, os amantes
Evadem-se do quarto escuro e buscam sozinhos
A claridade morna da tarde
Nas dobras mucosas da memória
Sensações metonímicas explodem
Entre o pensamento e a ação
Sentir-se assim entre indeciso e lógico
Água límpida a escorrer das horas
Querer e não haver por perto o que desperta o desejo
Mas trazê-lo todo inteiro junto ao coração
É privilégio de deuses suspensos na infância da eternidade
Quando as mãos se fazem árvores
De onde brotam frutos de palavras novas
Condizentes com o nome impronunciável do amor

O que fazer sem ti nessa cidade sem mar
E sóbria, logo cedo de manhã
Num domingo em que alguém metralha
Uma britadeira no coração do silêncio?
Antes os dias em que as noites
Findavam-se nas manhãs
Agora é preciso beber esse ar disfarçado de brisa
Olhar para um céu em que
Gaivotas cruzam só de passagem
Reler as cartas que não me escreveu
Imaginar tua letra dançando
Na corda bamba das linhas
Tua letra linda de alguém que talvez
Tenha o ascendente em Gêmeos
Sei tão pouco de ti
Primeiro me apaixonei pela tua letra
Depois é que li a gramática dos teus gestos

Penso em ti
Com o impulso do susto
De quem ouve — entre silêncios
Estrondo de vidros quebrando
Não sei de que substância
[E qual peso]
Consiste a imagem
Dessa súbita falta tua
Por baixo de minha pele
Na película gelatinosa dos olhos
A forma duplicada entre o que vejo
E o que desejo ver
Sei que carrega a eletricidade
Da primeira palavra pronunciada
E imediatamente compreendida
Guerras íntimas vencidas
Esferas do acaso coincidindo
Um corpo diante do outro
E o sopro de um breve destino
Marcado de riso e medo
Tons etílicos de sílabas sibilam
Saber-se suficientes meus olhos moventes
No labirinto dos teus

Cercar o objeto de palavras
Até encontrar as que mais se aproximam
De sua exata forma, suas cores e texturas
O modo como o objeto sorri
Num dia claro de sol
O que vemos com nossos olhos
Jamais terá a substância animada
O sopro de espírito e matéria a quem
Foi entregue um nome, uma história
Sua suspensão etérea nos cordames do tempo
Tocamos somente a imagem refletida na
Superfície translúcida de algumas palavras

Estes poemas estão publicados no livro “instruções para morder a palavra pássaro” de Assionara Souza, recém-publicado pela editora telaranha. Para quem é do Rio de Janeiro, sexta-feira, dia 26/08 às 19h, haverá um evento em homenagem à obra de Assionara Souza na Livraria da Travessa, em Botafogo. O evento faz parte da série Poetas de dois mundos, organizada pelo livreiro Leonardo Marona. Durante a noite, haverá leituras de André Luiz Costa, Estela Rosa, Francisco Mallmann, Leticia Feres, Natasha Felix, Stephanie Borges, Taís Bravo, Valeska Torres e Victor Squella.

Assionara Souza

Escritora, nascida em Caicó/RN, em 14 de outubro de 1969, e radicada em Curitiba/PR. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, foi pesquisadora da obra de Osman Lins (1924–1978). Autora dos volumes de contos Cecília não é um cachimbo (2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os hábitos e os monges (2011), Na rua: a caminho do circo (2014) — contemplado com a Bolsa Petrobras, 2014; e Alquimista na chuva (poesia, 2017). Sua obra tem sido publicada no México pela editora Calygramma. Participou do coletivo Escritoras Suicidas. Idealizou e coordenou o projeto Translações: literatura em transito. Estreou na dramaturgia escrevendo a peça Das mulheres de antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro. Morreu em 21 de maio de 2018, em Curitiba/PR.

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