Cinco poemas de "Não tentar domar bicho selvagem" de Isabella Bettoni

não tenho país, então todos os países são meus

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
3 min readAug 2, 2022

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Fronteiriça

(palavras recolhidas do texto de Gloria Anzaldúa ou
outras formas de fazer fichamento)

sou uma alma entre mundos
não tenho país, então todos os países são meus

posicionada entre, estendendo-me sobre,

como estar nas duas margens do rio
simultanea/mente

tenho que me mover constante/mente (rigidez significa
morte)

e o movimento cria, continua/mente
uma quebra
e uma síntese

é preciso abraçar a ambivalência a multiplicidade
a perplexidade: inúmeras possibilidades me deixam à
deriva
em mares desconhecidos

a inquietude

podemos trilhar uma outra rota

Ergueu-se o arco-íris após longa tormenta

(em memória de emily dickinson)

I -
uma moça séria
os olhos e cabelos: escuros
sobre a pele clara
o penteado: rígido
a cabeça: rompida
ao meio
as vestes: duras

e o olhar distante
como quem,
fora de seu tempo,
fora de seu espaço,

usa as palavras
- aquelas mais intensas e macias -
para falar de amor.

(um assombro!)
amor proibido e apagado
por especulações, violentas, tantas,

os nomes de mulher
riscados
somente nas costuras de hoje
reaparecem na história

II-
vamos comer emily

para que amores como os nossos
sejam possíveis

Às ausentes de referências

Passei a vida contendo rio com as mãos
Tarefa impossível
e malfeita

O bicho

Um bicho enorme atravessa a rua no centro da cidade
tão cotidiano quanto o foto-na-hora-foto-vendo-ouro-compro-cabelo
um pouco maior do que o pirulito da praça sete,
faz uma sombra estranha no encontro das avenidas
e caminha lentamente ao lado daquela placa que diz
proibido virar à direita, proibido virar à direita

se o bicho não vira a direita, para onde ele vai? para onde é possível ir?

será que os carros param, será que o mundo se suspende, será que as pessoas interrompem a
corrida e descem do ônibus pra ver?
será que ao acordar de repente com um susto assim as pessoas
param pra ver o que nunca foi visto

ver o que nunca foi visto

e para onde ele vai?

Sozinha

I — Habitar a casa
em silêncio
saboreando o tempo
que se abre: desdobra
em medos. angústias.
Mas também — prazeres
tão banais quanto
deitar na cama em posição diagonal
sem saber qual é o dia do mês
ou a hora da madrugada
em que chega o poema

II- Massagear os dedos com a
caneta que range
ao encontrar a folha
Ruído solene: companhia

III- Usar a madrugada para
pisar o texto com fôlego
(como as uvas nos barris);
deixar o tempo agir.
Ver as palavras ganharem
pequenas rugas,
rusgas,
rasgos

“Não tentar domar bicho selvagem” será lançado pela Quintal Edições e está em pré-venda através do link: https://benfeitoria.com/projeto/naotentardomarbichoselvagem

Isabella Bettoni nasceu e vive em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde atua como advogada feminista, pesquisadora e escritora. Seu primeiro livro, Brincando de fazer poesia, foi lançado em 2008 pela Editora Uni Duni com poesias para crianças em fase de alfabetização. Participa de cinco antologias, com destaque para Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje, da Quintal Edições (2021) e Coleção Desaguamentos Vol. I — Poesia de autoria feminina, da Editora Escaleras (2021). Além disso, integra a equipe do Portal Fazia Poesia, venceu a I Batalha do Festival Poesias que Inundam e tem textos publicados em portais e revistas como Ruído Manifesto, Tamarina, Mormaço, Declama Mulher, Revista La Loba e Revista Minha Voz. Está no Instagram como: @bellabettoni.

Estes poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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