Cinco poemas de “: pescoço x sobreviventes” de Carla Diacov

devo ser mesmo esse caqui mole/olhando a lata errada nos mercados

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem

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pequenas muitas pilhas de pratos sujos
complicando o café da manhã
e bastará uma rajada de nervos
para que o sobrevivente
faça a coisa mais difícil de sua sobrevida
voltar a pensar em deuses

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não me sinto tão
bem nunca me senti tão capada
não tenho a memória de estar
vibrante “As they say on my own Cape Cod”
sinto que deveria ter me dedicado ao
arco e flecha como dediquei o pescoço
à leitura de teorias ufo
acordo com essa pança cheia de melancolia
olho minha mãe me olhando
minha cachorrinha me olha olhando minha mãe triste
já fui pega olhando uma lata
de molho de tomates no lugar errado
o rapaz me pegou pela mão perguntou meu nome
perdida mora por perto está sozinha
entre ervilhas eu disse
o molho entre ervilhas
comprei caqui mole e bistecas de porco
comprei a serralheria dos ouvidos açougueiros
nunca me senti tão amputada
o caminho me levou até minha mãe
minha cachorrinha olhando minha mãe triste me olhando morta
acho que seu pai tinha isso que você tem
e isso veio da conversa com a psiquiatra
isso não tinha cid e eu tenho pensamentos mágicos
trocamos a cidade a psiquiatra
me sinto bem pior
agora que sei ser vibrante com a não compreensão
do tigre conviver
sei e posso e alcanço falar sobre minhas deficiências
sobre meus distúrbios
e isso assusta muito quem não me vê babando
errando as pernas letras assusta não conhecer
devo ser mesmo esse caqui mole olhando
a lata errada nos mercados
carla
ninguém fala moléstia no poema
carla é só uma lata fora do lugar
carla
“As they say on my own Cape Cod”
a vida é bonita e cheia de coelhos com trevos entre os dentes
o rapaz mais famoso da minha estante
me puxa pelos cabelos
perdida mora por perto está sozinha
uma lata errada
“a loucura é portátil”
é claro que a lata não é errada
carla e a lata
“As they say on my own Cape Cod…
partners in prosperity.”

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enquanto olho a lata
a mão no pescoço
uma lata de molho entre ervilhas
o rapaz
perdida mora por perto
cheiro de caqui longe
mole como o pescoço mora
tudo longe cheira perto perdido
óbvio como óbvio: a lata não é o erro:
errado estar vestida em organza amarela
frufrus para o pescoço:
quando você olha muito tempo para um lugar só
a sensação é a de que o pescoço está inclinado
para o lado sombreado da coisa olhada:
entre ervilhas
disse
moro entre ervilhas, tyger
pescoceio o molho
figuro ser uma metralhadora: guerra entre passos, tyger

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o sobrevivente estende as mãos à estátua
o ritmo dos joelhos
o pão ainda cru
obscenidades
algumas razões
quinas duns pensamentos
mas chora
o sobrevivente estende as mãos à estátua
mas chora
o sobrevivente teme o caminho da lágrima na mão embrutecida
chora toda a sede da goela
mas estende as mãos
mas contorna
um ponto além do contorno duro
contorna
imita
estende a biografia do nariz
o sobrevivente afia a moela e cisca o assoalho
estou perto estou bem perto
o sobrevivente e algumas razões
o pão ainda cru
mas pão

:
e descobriram um tipo de pescoço que diz a verdade
sobre as coisas que acredita dizer
e descobriram que não há outro tipo de pescoço

Estes poemas fazem parte do novo livro de Carla Diacov, “: pescoço x sobreviventes” que acaba de ser lançado pela Edições Garupa. Você pode comprar agora mesmo clicando aqui e colaborar com uma editora independente!

Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975.

Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, 2015/Edições Macondo, 2018), A metáfora mais Gentil do Mundo Gentil (Macondo Edições, Juiz de fora, 2016), Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro online pela Enfermaria 6, 2017), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (editado pelo escritor português, no projeto não comercial Casa Mãe, Portugal, 2017), A Munição Compro Depois (Cozinha Experimental, 2018), : pescoço x sobreviventes (Garupa Edições, 2021).

Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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