Rubyetc, sempre ela.

Como ser feliz em meio ao caos?

Uma carta para Taís Bravo

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
7 min readOct 2, 2017

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Taís,

Sei que já te mandei um áudio sobre isso, mas não consegui ainda parar de pensar naquela cena: eu, no curso sobre autoras&poetas em português, sentada na mesa com desconhecidos, falando sobre ser feliz no caos. Quando soltei aquela frase: coletivamente está tudo uma merda, mas individualmente tenho visto tantos amigos realizados, é difícil identificar quando estamos nos sabotando porque não aceitamos que podemos estar felizes no meio do caos. Essa frase, ou algo assim, saiu da minha boca como se sempre tivesse estado ali, como se isso fosse uma verdade universal pra mim há bastante tempo. Foi como os conselhos amorosos que dou para as minhas amigas. É algo que pensei tanto já, que a frase não sai, mas escorrega da boca.

A questão aqui é que eu não tinha pensado nisso antes. Fazia dois dias que eu tinha voltado do Sul, depois de três dias escrevendo poesia ao lado de uma das minhas poetas favoritas, a Angélica Freitas. Eu estava radiante mesmo, mas ao mesmo tempo apática e muito confusa. E aí, de repente, aquela frase na mesa com os livros de poesia. Foi tudo muito estranho, disfarcei com blush, parecia que era mesmo a frase de um guru que pensa nisso há tempos. Nada disso. A frase veio pra mim como um soco que eu mesma me dei. Fiquei flutuando na sala pensando naquilo enquanto lia poemas de Orides Fontela e Sophia de Mello Breyner Andresen.

Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do espelho.

- Orides Fontela, Ludismo

Estamos vivendo um período sombrio. Confuso, cheio de retrocessos. Exposições censuradas, cura gay, o prefeito da nossa cidade é um pastor que pode proibir eventos autorizados a hora que quiser, a cada 11 minutos uma de nós é estuprada. O tráfico lava dinheiro nas igrejas evangélicas e nós estamos cada vez mais doentes e cansados e exaustos de tantas notícias alarmistas e consumo desenfreado. Há uma possível guerra nuclear embaixo dos panos, sites divulgam mapas simulados de países arrasados por bombas de hidrogênio enquanto nós tentamos decifrar juntas o que significa aquela determinada frase do boy vaselina que escapa pelo WhatsApp. É tudo muito frágil, tudo muito despedaçado. Somos adultas agora, já não podemos mais ignorar.

Rubyetc is my spirit animal.

Outro dia compartilhei no Facebook aquele pixo que tanto adoro: Não estou sabendo existir. Algumas pessoas vieram, preocupadas, me perguntar o que estava acontecendo. Outras comentaram que estava difícil e só um abraço salvava. Mas, no fundo no fundo, aquela frase falava mais sobre felicidade do que sobre tristeza. Eu não estava sabendo existir porque me sentia feliz em meio ao caos. O Refúgio Poético, o poema encomenda, a Mulheres que escrevem, o Mulherio das Letras, seus artigos, meus poemas, amigos saindo da depressão, se jogando na arte e na vida. Tá tudo uma merda, tá sim, mas eu realmente tinha motivos para me sentir feliz.

No domingo depois do final de semana com a Angélica e tantas outras pessoas novas e desconhecidas produzindo juntas, a chuva, o frio, aquele túnel, no domingo depois disso tudo, eu deitei na cama do hotel em Porto Alegre, antes de voltar pro Rio, e uma tristeza suave pairou sobre mim. Eu pensava mais sobre aquilo tudo estar acabando do que no fato de aquilo ser mais um começo. Senti uma solidão imensa, pensei que a análise era só terça-feira, rodei minha lista de contatos no WhatsApp e não sabia bem pra quem mandar uma mensagem. Sentia que estava sabotando aqueles dias deitada em uma cama enorme sozinha em outro estado. Mas eu estava em outro estado, entrei em um avião e fui, arrastei minha mala e conversei com motoristas e trocadores em outra cidade. Eu estava feliz, mas como me permitir isso?

Perfeito é não quebrar
A imaginária linha

- Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando te mandei mensagem falando sobre o que eu disse na mesa do curso, não sabia bem o que queria dizer. Acho que queria tentar justificar a minha e a sua ansiedade, nós que estamos com o que temos em mãos, mas sabendo que tudo pode quebrar e se romper a qualquer momento. Eu queria te dar uma ferramenta para acalmar sua ansiedade que não tinha nome, nem CPF, e assim acalmar a minha ansiedade também. Existir contente no meio do caos é uma tarefa árdua, o que sobra é esconder ou justificar aquele sorriso largado. Com tanta merda acontecendo, me questiono se estar feliz é egoísmo ou uma forma de resistir.

Depois que te mandei a mensagem, rolando a timeline do Facebook, vi um vídeo de um amigo dançando e, na legenda, ele pedia desculpas por dançar. Fiquei olhando aquilo e entendi que não somos só nós com uma ansiedade não nomeada. O que fazer no meio desse caos que nos mutila cada vez mais? Dançar seria de fato a melhor escolha? Não tenho exatamente uma resposta, mas tendo a achar que ver os outros dançando no caos me alivia mais do que essa apatia generalizada que estamos experimentando sem dó.

A Doutora S. disse: “Parece que você está se divertindo”.
Fiquei chocada. Como eu podia estar me divertindo? Uma mulher que foi abandonada pelo marido e tinha ficado doida por conta disso, ainda que “brevemente”, como podia estar se divertindo?

- Siri Hustvedt, O verão sem homens

A busca pela felicidade plena, em um estado perfeito, imaginário, sem quebras, faz com que as pequenas felicidades e diversões se percam ao longo da vida. Ao invés de aproveitar uma enorme cama de hotel pensando em tudo o que aconteceu de maravilhoso em 2017, eu estava com uma voz de defunto pensando nos problemas do país e nos meus próprios problemas. É um crime se atrever estar feliz em meio ao caos e às dores. Ao mesmo tempo, esse é um crime que praticamos constantemente em cada roda de samba, em cada jantar de Natal constrangedoramente feliz e problemático. Somos feitos inteiramente de contradições e, ainda assim, não nos permitimos entrar em contato com elas. Como eu podia estar me divertindo? Quem me autorizaria a isso a não ser eu mesma?

Refúgio Poético com Angélica Freitas em Vespasiano Correa. Foto por Ariele Louise Barichello Cunha.

No meio do Refúgio Poético, subindo uma ladeira cheia de lama, escorregando e sofrendo com o sedentarismo, eu e Angélica nos abraçamos. Foi um abraço engraçado, no meio de uma identificação astrológica, um abraço por entendermos as torrentes de água que nos invadem diariamente. Mas foi um abraço no meio da lama e não poderia mesmo ter sido em solo seguro. Não estamos em solo seguro, mas estamos felizes. E tendo a achar, cada dia mais, que podemos estar e que estarmos felizes é a nossa única saída no meio de tanto retrocesso. Ecoa na minha cabeça a frase de Emma Goldman “Se não posso dançar, não é minha revolução”. Ela ecoou na hora em que vi o vídeo desse amigo pedindo desculpas por ter acordado dançando. Estamos mesmo com os sapatos cheios de lama, com dores pelo corpo, mas e se pudermos dançar sem nos desculpar?

Quando saí da análise pela primeira vez, a Dra. Barbosa me perguntou qual seria o motivo daquela partida. Eram muitos, mas o principal deles era que eu andava conquistando coisas e achava que podia seguir adiante sozinha enquanto me sentia minimamente satisfeita. Foi quando ela me disse: a gente também precisa de ajuda para lidar com a felicidade, não é fácil estar feliz. E de fato não é. Agora, sentada aqui, com um sol lindo entrando pela janela, eu posso dizer que não é fácil mesmo estar feliz, se sentir incompleta e satisfeita. A noção de felicidade como algo último, que irá chegar completa, nos confunde e não nos permite desfrutar essas horinhas de descanso. Não sabemos lidar com a nossa felicidade, não sabemos lidar com a felicidade do outra, mas seguimos sendo felizes e nos abraçando, meio desengonçadas, na lama, no caos, um pouco perdidas, não sabendo existir, mas sabendo que aquela sensação é o corpo resistindo e sobrevivendo aos poucos, um pouquinho mais a cada dia.

Para ouvir o podcast que gravamos com Estela Rosa, clique aqui!

Esta carta foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).