Conhecer de perto a história do desastre

uma resenha sobre “Cidades afundam em dias normais” de Aline Valek

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readApr 7, 2021

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A leitura de um livro é feita a partir do que se encontra inscrito nas páginas e do olhar que lançamos a essas palavras. A perspectiva que move uma interpretação é um contexto singular, por isso, ler um romance é um acontecimento que não se repete. Um livro não é um objeto estático, as palavras se movem dependendo do ponto de vista de quem as acessa. Comecei a ler “Cidades afundam em dias normais”, novo romance da Aline Valek, em dezembro de 2020 e terminei a leitura em janeiro de 2021. Foi significativo estar acompanhada dessa narrativa enquanto tentava atravessar esse marco temporal e elaborar um fim para 2020 sabendo que os calendários não interrompem os desastres.

A cidade afundou, afinal, e ninguém parecia olhar para o lugar certo. Já estavam todos perdendo tudo, devagar, por tanto tempo, que não viram que perderiam também aquele lugar, aquele momento. Como fotografar o que se perdeu? Aqui, revela-se uma tentativa; do ponto de vida que só alguém que viveu um apocalipse poderia ter.

Enquanto lia a história de Alto-Oeste, uma cidade que emergiu das águas depois de passar anos extinta, pensava no meu próprio território e nos seus desastres que não cessam de se repetir há mais de 500 anos. No romance de Valek, quem conta a história de Alto-Oeste são aqueles que partiram mas voltaram: Um padre, uma professora, uma fotógrafa, um artista, entre outras pessoas em busca de qualquer oportunidade. Para capturar essas vozes, a autora constrói uma narrativa fragmentada em diferentes registros. Há, além de uma narradora onisciente que atravessa a trama, trechos de diário, reportagens e epílogos. Com essa estratégia, a história do desastre e dos que sobrevivem a ele permanece insolucionável e somos nós, as/os leitoras/es, que precisamos escolher em qual sentido desejamos insistir.

Parece que uma foto nasce nos segundos de um clique, nas, na verdade, ela vem de uma busca que começou muitos dias antes. Algumas fotografias precisam de anos para serem tiradas.

Como os melhores romances, “Cidades afundam em dias normais” é um livro que pode ser lido de muitas formas: É a narrativa de uma fotógrafa que escolhe o desterro como um modo de vida; é o relato de uma amizade entre duas garotas no interior do Brasil; é o retrato das possíveis pessoas que habitam um mesmo território sendo nada mais do que gente banal até que você aprende a enxergar o que dizem os seus rostos. Mas, para mim, “Cidades afundam em dias normais” é uma reflexão sobre a memória em tempos de extinção: Como construir uma memória enquanto se vive em ruínas? Que forma de arquivo pode resistir a continuidade dos desastres? Como reativar as nossas origens interrompidas? E por quê? De que vale escrever, registrar, fotografar quando tudo parece estar destinado a se perder?

“Meu fim do mundo foi há muito tempo”; Érica disse. “Mesmo assim, não foi o fim. Continuo aqui. Continuamos. E o que a gente pode fazer? Ficar e lutar. A escola me ensinou isso (…) “Eu demorei a entender porque não queria largar esse colégio de jeito nenhum. Porque tem algo do meu pai aqui. Da minha origem. Eu era muito nova quando entendi que a gente carrega aqui dentro a nossa própria destruição, o potencial de nos despedaçar aos poucos. Nascemos para a morte, essa é a natureza. Mas foi aqui, nesse lugar, que aprendi a construir. E é nessa construção que a gente adia o fim”.

Não existe uma resposta. Talvez não exista nem um sentido. Os registros não salvam, não explicam, não são utilitários; são produtos de uma insistência humana. Mais do que aquilo que captura ou produz, o que importa é o gesto, o impulso para seguir criando algo. Um caderno repleto de palavras é uma coisa silenciosa até ser encontrado. O registro, então, só existe pelo contato que ativa outros movimentos. É um modo de olhar, ou seja, uma leitura, que dá corda nessa insistência em que lembrar e imaginar se misturam. E, no deserto de possibilidades nos nossos tempos, continuar imaginando é um ato político de sobrevivência. Então, talvez, — e esse é o sentido que escolho insistir — registrar seja só um suspiro para forjar a existência provisória de um futuro. É assim que atravessamos mais um ano em busca de algo que seja radicalmente distinto do que nos apresentam como possível.

Resenha originalmente publicada na newsletter Trajetória de escrita.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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