Ilustração por Andrea De Santis

Crônica de um não-livro

Vocês sabem, a poesia não é o poema

Luanna Belmont
Mulheres que Escrevem
5 min readAug 11, 2017

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Sou, antes de qualquer coisa na vida, poeta. Esse “antes” não é mais, não é maior, não é melhor. Não é nem mesmo primeiro, se a gente pensar que nem sempre dá pra parar pra escrever um poema. Inúmeras vezes, e a gente se esforça para que não seja sempre, o poema precisa vir depois. Mas esse “antes” quer dizer que, faça o que eu fizer, esteja onde eu estiver, seja que papel eu estiver cumprindo naquele momento, o que eu estou, também e sobretudo, fazendo ali é um poema. Esse “antes” quer dizer que, pra mim, qualquer coisa é poema, mesmo que não entre na língua. Se, na hora ou depois, eu conseguir recuperar aquela experiência e conectá-la com meu desejo de escrita, se conseguir reunir todos os poemas que vivi e vou vivendo num poema que eu possa corporificar com palavras e dar aos outros, ótimo. Nem sempre consigo. O que é ótimo também. Fica o que tiver que ficar. Resta o que sobrevive e às vezes é muito, às vezes é pouco, mas é o necessário para a minha poesia.

Pois bem, sendo eu, antes de tudo, poeta, recebo muitos convites para lançamentos de livros. E recebi o de um que se chama “Como visualizar e resolver limites”, da Christiane Mazur Doi e da Annia Lalesca Mazur Lauricella. Logo pensei: nossa, esse título para um livro de poemas é genial! Eu e minha queda ancestral pela matemática, eu e minha queda por tudo quanto é mistério, eu e minha frustração por nunca ter aprendido a integrar e a derivar no ensino básico e por ter dado adeus a essa possibilidade quando decidi fazer faculdade de jornalismo, enfim, nós nos apaixonamos à primeira vista por este (suposto) livro de poemas: “Como visualizar e resolver limites”. Certamente era mais uma ladroagem da poesia, que rouba tudo de todo mundo. Não roubaria o cacoete instrucional dos livros de autoajuda? Não roubaria (claro que sim!, e não seria a primeira vez!) as metáforas da geometria e do cálculo? Ainda mais sendo escrito por duas mulheres. Ainda mais sendo escrito por duas mulheres com o mesmo sobrenome. Seriam irmãs? Mãe e filha? Bruxas? Era muito mistério pra um livro só.

Ilustração Andrea De Santis

Parei. Fiquei passeando pelos gráficos mostrados na chamada do lançamento, entendendo aos poucos o que, no fundo, não quero nunca entender: como pontos aleatórios entre x e y se encontram no espaço imaginário formado por dois eixos? Como símbolos sucessivamente rearranjados e combinados numa fórmula podem dar conta do que apenas “tende” a 3 ou a 1, mas não está lá, ainda, nem nunca estará, porque será sempre uma tendência, um caminho, um gerúndio? É claro que isso é poesia! Porque, vocês sabem, a poesia não é o poema. E basta qualquer linguagem, qualquer código para denunciar, a olho nu, que ela está ali, que ali tem um mistério corrompido pelo entendimento.

Só que não. Caí na tentação de ler a resenha que vinha depois dos gráficos. Coisa mais antipoética pode ser uma resenha, viu! Despenquei, então, daquele meu poema que já se construía todo cheio de si. Como não? “Como visualizar e resolver limites”. Como isso não seria um poema? Meus olhos escorregaram pela arte da capa, querendo não ver o que finalmente viram, o subtítulo, que esteve sempre ali. Afinal, ainda podia ser tudo uma farsa, uma apropriação, um grande poema a la Kenneth Goldsmith. Mas ele estava lá, o subtítulo, entre parênteses, (((fissura pelo símbolo-mor das equações))), impresso em vermelho-sangue: “100 exercícios detalhadamente explicados”. Ainda não estava conformada, mas confesso que esmoreci. Por três segundos.

Fiquei impactada só de me lembrar das horas infinitas de prática matemática a que me submeti com gosto nos anos de escola, resolvendo equações e problemas de química e física, conferindo gabaritos, fazendo cálculos de trás pra frente pra ver se havia entendido mesmo a coisa, se não haveria outras performances possíveis. Claro, o que eu gostava mesmo, vocês já sabem, era do mistério, do caminho, dos contornos todos e imprevistos do processo, das soluções mirabolantes que algumas situações exigiam. Resultado achado, perdia a graça. E olha que eu nem aprendi a derivar! Nem a integrar. Shame. Por outro lado, talvez isso tivesse posto em risco a minha poesia, por uma questão de saciedade precoce. Melhor não.

Ilustração de Andrea De Santis

Fora o fato de que o meu melhor amigo é um matemático e que, na adolescência, ficávamos brincando de quem fazia mais rápido, de cabeça, contas com dezenas, centenas e milhares, eu “tendi” para outra linguagem, para outro tipo de poema. Quando x tende a 3 e y tende a 1. Como visualizar?

Enfim, meu livro de poemas, para cujo lançamento fui convidada, morreu. Nunca existiu. Era, mesmo, o “meu” livro de poemas. Acima de todas as controvérsias políticas e estéticas, fica a lição de Goldsmith, de que a poesia é, antes (sempre antes), o desejo do poema, que o próprio poema. Ela é a possibilidade do poema em todas as coisas, em todos os discursos. O que dizem ser a “escrita não-criativa” será, talvez, a mais potente criação, ou a única possível: sobre o que já existe. E isso se cola com uma noção muito elementar e perigosa de poesia, que é a de, ao contrário do que diz o título da nossa história, não haver limite algum, a ser visualizado ou resolvido, entre o mundo e o poema, o que faz deste, e de qualquer outro lançamento, um lançar-se no horizonte, ou num abismo.

Mas, é claro, alguém lembrará, a matemática também já previu o infinito. Porque, antes de tudo, ela é poesia.

Luanna Belmont é poeta, formada em jornalismo pela PUC-Rio e doutoranda em Ciências da Literatura na UFRJ. Nasceu em 1980 em São Gonçalo, no grande Rio. Em 12 de junho de 2000, foi uma das reféns do sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro. Foi colunista semanal do site do Viva Rio e publicou, pela Editora 7Letras, na coleção Megamíni, o livro de poemas “Sobretudo verde”. Tem textos e video-poemas publicados na Revista Mallarmargens e na Revista Oceânica, entre outras publicações online, além de postar seus textos semanalmente no Facebook. Mora em Jacarepaguá desde 2013, colada à floresta.

Este texto foi originalmente publicado em nossa newsletter no dia 08/08 e faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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