Das coisas que não dissemos

Uma resenha sobre “Todos nós adorávamos caubóis” de Carol Bensimon

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
6 min readFeb 25, 2019

--

Desde as eleições não consigo me engajar em um romance ou qualquer tipo de ficção, para ser sincera. Tem sido mais fácil abrir livros de poesia de forma aleatória e quase oracular ou me concentrar em ensaios e textos teóricos que podem ser úteis para minha pesquisa. Essa dificuldade, no entanto, me deixa um tanto angustiada, já que agora tenho ainda mais vontade de me deslocar temporariamente da minha narrativa pessoal enquanto me entrego a uma história inventada. Em tempos duros como os nossos, onde nossas possibilidades estão em pleno processo de extinção, sinto ainda mais falta do que a ficção tem a oferecer.

Tentando superar esse limbo literário, resolvi recorrer aos livros já lidos, conhecidos e amados. Dentre esses, Todos nós adorávamos caubóis parecia a escolha mais certeira pela familiaridade com as personagens (tão próximas de tantas meninas que conheço ou fui), pelo estilo da escrita de Carol Bensimon e pela atmosfera de férias de seus romances. E, se reler esse livro foi uma ótima decisão, também foi uma experiência surpreendente. Encontrei nas suas páginas um registro do que fui, do que minha geração foi, enquanto não sabíamos que tínhamos, sim, alguma sorte.

Publicado em 2013, “Todos nós adorávamos caubóis” conta a história de duas jovens mulheres com seus vinte e poucos anos que vivem um relacionamento que escapa de uma definição. Elas não são exatamente amigas ainda que passem pela amizade, também não chegam a ser namoradas, mas podem ser mais íntimas do que alguns (ou muitos) casais. São, como tantas as histórias dos nossos vinte e poucos anos, algo que nunca chegou a ser, mas que, entre silêncios e desejos, foi muita coisa.

A trama começa no momento em que as duas se reencontram depois de algum tempo separadas, cada uma em um canto do mundo — Cora na França, Julia no Canadá — , em um rompimento não explícito, como grande parte dessa relação. Cada uma tem uma narrativa pessoal para justificar o retorno ao Brasil, mas o que motiva a volta é uma vontade que beira o irracional: Concretizar os planos que fizeram ao longo de muitas madrugadas, os planos que eram mais uma promessa de futuro do que uma possibilidade concreta. Voltam ao Brasil para embarcar em uma viagem sem destino pelas pequenas cidades do interior do Sul do país. Uma viagem onde nada acontece além do fato de estarem juntas pegando a BR-116.

Acompanhamos essa história pela perspectiva de Cora, uma Garota da Cidade Grande, inteligente e cheia de referências, mas não exatamente esperta. Conhecemos Julia, portanto, pelo seu olhar, um olhar cuidadoso, atento a cada decisão incompreensível, o olhar de uma paixão contida que está o tempo todo observando o que não consegue (e talvez nem queira) deter. Julia é a Garota da Cidade Pequena Que Veio Estudar na Cidade Grande, provavelmente mais esperta do que Cora supõe. Em muitos momentos, as duas beiram o irritante, talvez pela ingenuidade própria dos 20 anos, talvez porque Bensimon seja muito boa em criar personagens que parecem com pessoas que conhecemos ou poderíamos conhecer.

Nesse momento da resenha, preciso me controlar para não começar uma análise psicológica sobre Cora e Julia, embora tenha muita vontade de passar horas comentando suas personalidades; falando mal de Cora ao mesmo tempo em que me solidarizo com seu lado apaixonada e sem jeito; detestando Julia só porque ela me lembra todas as garotas que já me fascinaram justamente porque eram imprevisíveis; usando as duas como reflexo da minha geração para desabafar as desilusões e ressentimentos que acompanham o fim dos vinte anos.

Isso é algo que acontece com as pessoas quando leem um romance de Carol Bensimon. Elas criam vínculos com as personagens, desenvolvem opiniões sobre elas, são capazes de entrar em debates intensos para defender ou julgar seus comportamentos. Vi isso acontecendo no dia em que conversamos sobre O Clube dos Jardineiros de Fumaça no encontro “Desmontando Romances” organizado pela Mulheres que Escrevem que contou com a presença da autora. Todos nós tínhamos uma verdade sobre aquelas pessoas que só existiam porque foram criadas por Carol. Mas em nenhum momento daquela conversa, a autora ousou dizer qual era a verdade daquelas personagens. Por isso, acredito que também não posso ou não deveria contar quem são Cora e Julia, porque isso seria limitá-las a minha perspectiva. É muito mais interessante deixar em aberto para que as futuras leitoras de Todos nós adorávamos caubóis construam suas próprias interpretações de quem são Cora e Julia.

Foto do evento “Desconstruindo romances” com Carol Bensimon na livraria Blooks

Outra marca da escrita de Bensimon que se encontra presente nesse livro é um cuidado com a forma. Em muitos trechos, a narrativa de Cora se atém a detalhes supostamente inúteis, informações aleatórias, descrições minuciosas sobre objetos e pessoas que não são de maneira alguma essenciais para o que acontece na trama. Isso acontece porque Bensimon se filia a uma literatura que se preocupa mais com o modo como as histórias são contadas do que com os acontecimentos, ou seja, com o conteúdo do que se conta. Esse cuidado formal contribui para que seus romances tenham uma certa textura, um clima, uma realidade sensorial. Para esse tipo de escrita, é importante contar que no dia em que ocorre a ruptura entre Cora e Julia, 86 árvores caíram por conta de uma tempestade. O que se passa entre elas não tem nada a ver com as árvores e a tempestade, mas a memória, ou seja, a narrativa dos acontecimentos, se ancora em detalhes como esses.

O cuidado formal também se mostra como uma escolha pela sugestão. A escrita de Bensimon mais sugere do que afirma. Com isso, escapa tanto do risco de dizer o óbvio quanto de fechar sua narrativa em um sentido único. A sugestão, ao contrário do fato explícito, também convoca a sensibilidade, demanda uma leitura ativa que coloca a percepção da leitora ou do leitor em jogo. Por exemplo, Carol não diz que duas jovens mulheres bissexuais viajando pelo interior do Sul do Brasil estão vulneráveis a situações de risco, ela sugere a tensão. No primeiro contato brusco com um homem, o que acontece já nas páginas iniciais, podemos sentir o medo e a vigília constante que atravessa a vida das mulheres. Mas isso não está dado como uma informação, é um elemento que depende da percepção de quem está lendo. Essa estratégia narrativa é particularmente interessante nessa trama. Sugerir é sustentar uma indeterminação; apontar, mas não dizer. Uma forma de narrar aquilo que transgride categorias ou que escapa de explicações lineares, como tantas sexualidades, relacionamentos e histórias de amor.

Uma questão que diz respeito ao conteúdo, mas que dialoga com essas estratégias formais, é a preferência de Bensimon por personagens não lineares com vidas que se aproximam mais de um formato em espiral. Como ela escreve na crônica Linhas e espirais, pessoas que “olham para o futuro com a mesma frequência que olham para trás, não cumprem exatamente o que se espera para a sua idade e fazem esforços para que o tempo presente seja uma mistura de tempos”. Enquanto relia Todos nós adorávamos caubóis me peguei sendo parte desse grupo que, seja por nostalgia ou por angústia, retorna ao passado.

O livro, sem querer, se tornou uma ferramenta de investigação e encontro com um tempo expandido onde as memórias se mostram em permanente construção. Estava ali entre aquelas páginas uma versão de quem fui aos 24 anos sem poder imaginar o que aconteceria comigo mesma, meu país e nosso futuro. Retornar, no entanto, não é como completar os lapsos entre a narrativa que acreditava viver e a história que acontecia fora do meu alcance. Na verdade, é mais como expandir o lapso. Uma espiral, ganhando mais e mais camadas.

Nesse exercício nostálgico, perto demais de uma nostalgia paralisante, lembrei de algo que aprendi com Rebecca Solnit: se onde estou agora era uma realidade improvável em 2014, é porque o futuro é sempre incerto, ou seja, aberto às possibilidades. Mais uma volta na espiral e logo se vê que o pessimismo, assim como um otimismo ingênuo, é apenas outra forma de não lidar com a indeterminação, uma outra forma de completar os lapsos. Quando termino pela segunda vez a história de Cora e Julia não estou mais no mesmo lugar. E esse tipo de deslocamento, não linear e indeterminado, é o que a ficção tem a nos oferecer de mais potente.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter

--

--