Diário de Leitura: Canção sem palavras

Cada livro nos escolhe no tempo certo

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
12 min readJun 4, 2018

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antes

Quero escrever sobre “Canção sem palavras”, romance de Laura Cohen Rabelo. Mas, para escrever sobre o romance, preciso falar sobre o livro e sobre como ele chegou até mim. Ainda é 2017, quando Laura dá dois livros para Caio, em Belo Horizonte; em Janeiro, no Rio, eles chegam até Estela que, por fim, entrega o meu exemplar, em meio ao suor, papos sobre boys lixos e hambúrgueres de costela. Há uma urgência em torno dessa entrega. Mas, quando o livro chega, decido esperar. Gosto de acreditar que cada livro nos escolhe no tempo certo e não pretendo perder essa ilusão. Deixo o livro de Laura na minha mesa, junto a outros títulos, papéis e minha eventual desordem. Ensaio começos e acabo sempre fechando o livro, me sentindo um pouco como quando era adolescente e guardava os adesivos das agendas para usar em um momento especial sem ter muita ideia de como esse momento seria.

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É Sexta-feira da Paixão e estou deitada na cama de Estela. Braços para cima, pernas dobradas, pés flutuantes. Ela está ao meu lado, do outro está Natasha e na ponta está Seane. Estamos reunidas pela primeira vez. Começo a falar sobre coisas práticas, meu papel e minha função na nossa equipe, mas nessa posição é fácil escapar para um lugar mais vulnerável. Lá no meio da minha tentativa de ordem, uma angústia: um dos aspectos mais importantes da minha vida é coordenar uma iniciativa chamada Mulheres que Escrevem, mas nem sempre sei se sou escritora, se ainda escrevo ou porque escrevo. Sustentamos a crise, sem solução, seguimos aos planos que ainda são possíveis. Gravamos a primeira temporada do nosso podcast. Eu falo sobre não precisar ser feliz, Natasha sobre a solidão e, ao fim, conversamos juntas sobre livros para sair da bad (ou livros sobre a bad?). Os temas amenos não parecem mais possíveis. Estela fala sobre o “Canção sem palavras” e lembro do vídeo em que Laura conta sobre o gesto de cortar as unhas, uma ruptura que marca o tempo de um abandono. Me pergunto qual seria o gesto equivalente para uma mulher que escreve.

primeira noite

Talvez começar a ler um livro às 23 horas de um domingo, quando é preciso levantar às 5:50 da manhã no dia seguinte, seja um modo de autossabotagem. Mas entre bom e ruim há muitas camadas. Sigo até uma da manhã vidrada na narrativa de Maria Teresa. Às nove, entre viagens de ônibus e intervalos, já terei lido mais de um terço do romance.

dia 1

Dois impulsos dominam a segunda: O desejo impossível de ignorar minhas responsabilidades para passar o dia inteiro com Matê e a vontade de comprar um caderno escolar, pautado, baratinho, o mais simples possível.

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Maria Teresa Bauer é uma jovem de 23 anos que mora em Belo Horizonte, acabou de se formar na faculdade e é um prodígio no violão erudito.

Maria Teresa é uma violocentista talentosa que aos 23 anos já conquistou prêmios nacionais e fez diversas apresentações, até mesmo internacionais, com seu duo Moreno-Bauer, composto por ela e seu namorado Arie Moreno Levi.

Maria Teresa é uma mulher que muitas vezes ainda será chamada de menina por companheiros de trabalho e terá que exibir um sorriso amarelo quando algum deles precisar fazer alguma piada para tranquilizar seu próprio constrangimento diante da superioridade de uma mulher.

Matê ainda é uma garota e, aos 23 anos, lida diariamente com uma escolha de vida. Uma escolha que se impõe mais intensamente do que a maioria das escolhas que fazemos quase involuntariamente na vida. Uma escolha que a conduz necessariamente ao abismo das coisas que podem ser criadas. A escolha de fazer, a partir do próprio corpo, surgir algo que antes não existia, dar forma de som ao silêncio.

Maria Teresa é uma menina que se apaixonou pelo companheiro de violão, dividiu com ele horas e horas de trabalho, aquilo que se repete e, entre a alegria e o tédio, os momentos derradeiros em que juntos tocavam algo parecido com um acontecimento sobrenatural fruto de um dom sem esforço. Até que tudo acabou e ela se viu sozinha com a materialidade de seu violão e de seu corpo de mulher, vazios de qualquer inspiração divina.

Maria Teresa, alguns podem dizer, viveu um relacionamento quase abusivo com um boy lixo invejoso e incapaz de conviver com o talento de uma mulher superior a ele.

Matê foi uma menina que ainda adolescente ousou ser muito boa em algo, mais ainda, ser a melhor entre todos.

Maria Teresa é uma garota branca privilegiada, cheia de boas oportunidades que, depois de perder o namorado, entra em crise e passa um ano viajando em busca de si mesma.

Maria Teresa é uma pessoa que quer construir seu próprio trajeto e desviar de qualquer predestinação.

Maria Teresa tem uma queda por Boys Lixo.

Maria Teresa deveria fazer análise.

Matê é uma mulher que tenta começar algo.

*

Cada história pode ser contada de muitas formas. Nossa história é quase todos os dias contada entre o conjunto de palavras possíveis. O ameno do que é acessível em nossa comunicação instantânea transitando entre a necessidade de fazer parte e o desejo de deixar uma marca única. Cada nome que damos para um afeto diminui a potência do que nos habita fora dessa limitação, significado & significante. Mas como existo sem uma narrativa? Cada história pode ser contada de muitas formas e se ainda lemos romances é pela forma que eles nos dizem que as histórias ainda podem ser contadas. A história de Maria Teresa poderia ser de muitas formas, mas só é contada pelas palavras que Laura escreve. Uma história é contada de muitas formas, mas escolher quais palavras são nossas vem sempre com alguma ruptura.

dia 2

Na terça-feira, eu compro um caderno e é nele que começo a rasurar esse texto.

dia 3

Viver em grupo significa todas aquelas brincadeiras, as piadas internas que ficam ininteligíveis se tiradas do contexto, os duplos sentidos, viver em grupo significa comer junto e dormir junto, não se soltar na solidão vazia. Ela de fato se sente pertencente ao grupo e é clara a sensação de que pertencendo a uma só gente ela não tem mais o peso de ser alguém. Às 07:15, no 616, fecho o livro antes de chegar no meu ponto. As regras da união de corpos se aplicam a cada corpo com diferente impacto. Preciso de um tempo com essa frase. Atravesso até a Letras com o livro ainda nas mãos. Não vou voltar a ele tão cedo. Entre os nossos banquinhos, se dá organicamente um acontecimento. Os alunos da habilitação em inglês vão, pouco a pouco, misturando turmas e panelinhas até formar uma roda. Nos unimos pelo ranço, o cansaço, os absurdos e um prazer velado de compartilhar essa experiência. Parece tudo péssimo, mas rimos com gosto. Quando estão todos juntos, de pé numa roda (que chama a atenção dos passantes pelo aeroporto no início daquela madrugada), a madrichá Bia diz que agora eles são um grupo de quarenta pessoas, e que aquilo significa que, se uma pessoa tem um problema, aquele problema não é só da pessoa, mas do grupo inteiro. Sente um alívio em forma de dissolução de todas as ansiedades: Às nove, um professor falta e tenho um buraco no meu horário. Deveria me separar do meu grupo, ir para a sala de estudos, botar os textos em dia ou voltar ao livro. É muito mais fácil se deixar levar. Permaneço em um grupo menor, um trio, os tons são mais amenos. Atravessamos os problemas ainda risíveis até um ponto onde a repetição é inevitável mas nunca é idêntica, falamos sobre nossas casas, origens, família. A alça do meu sutiã escapa da blusa e Carol ajeita com a naturalidade de quem pode cuidar do outro. E é um alívio saber que posso me descuidar.

Às 11 horas, tenho a única aula de literatura do semestre. Esqueço de mim, esqueço das minhas particularidades efêmeras ainda que fundamentais — o saldo da conta corrente, os compromissos minuciosamente listados em um aplicativo, os crushs e as crises — estou presente de corpo inteiro. Gosto de me sentir pensando em um processo que não me pertence, porque me antecede e ultrapassa. Gosto de fazer parte dessa comunidade pensante feita de um outro tipo de materialidade. A textura dessa conexão me dá prazer. Às 12:45, saio da aula com a vibração de cada pensamento no corpo. Estou atrasada para o trabalho e os corredores estão abarrotados de alunos saindo de suas salas, formando voltas na fila do bandejão, travando o caminho em rodinhas espontâneas e inconvenientes. Não faço como de costume. Não me afobo e me irrito com cada um que me atrapalha. Ainda com o corpo, sinto um carinho por aquela confusão. Percebo que é mesmo um tipo de amor a insistência que me faz ocupar esse espaço, minha segunda graduação, depois de um percurso de desistências. Em um gesto de confiança, me misturo aquela massa, obedeço seu ritmo e, de alguma forma, flui. Ao fim do corredor, uma ideia me atravessa: odeio cada um dos homens que já me fizeram pensar que não faço parte desse lugar.

*

Sempre que Maria Teresa entra na sala do velho professor Lopes cheia de rapazes em plena juventude, sente um cheiro forte que ela mesma não carrega, óleo de corpo, mão suada, sabonete antisséptico, quadra esportiva, testosterona, meia velha, cabelo sujo, desodorante masculino. Nos primeiros meses, tem a sensação estranha de estar sempre no vão da porta daquela sala, jamais entrar, e que todos os olhos se voltam a ela cheios de pensamentos. Já no trabalho, converso com outra Carol sobre o projeto que estamos escrevendo. Ela me conta que enquanto dirigia o filme lembrou muitas vezes da frase da Jill Solloway: Dirigir é desejar. Isso é muito difícil, ela diz, é custoso ocupar esse lugar de alguém que deseja. Criar é desejar e para nós, mulheres, isso parece exigir um certo constrangimento. Não aprendemos que podemos conviver com a falta e persegui-la até criar algo que, evidentemente, não era o que buscávamos, mas que, de alguma forma, nos dá uma intensa satisfação. Precisamos, já mais velhas, nos autorizar a encarar essa assertividade. Depois, mais enturmada, ela mesma foi fazendo piada da própria situação, e de alguma forma conseguindo contornar o que a desagradava. Mas apenas quando ela começou a tocar com Arie que passaram a respeitá-la e não vê-la como uma coisa à parte, a ser conquistada, superada ou rechaçada. Carol diz que superou sua dificuldade ao sustentar a incerteza, porque, fazendo parte de uma equipe de mulheres, encontrou espaço para estar vulnerável. Volto para minha mesa para escrever. Sinto na ponta dos dedos a borda de uma descoberta que vamos, pouco a pouco, descolando, em busca de uma camada que revele a falta como um tipo de poder.

dia 4

Na quinta-feira, mais um buraco no horário, outro professor não aparece. Destilamos um ódio que só é possível em grupo. Me vejo no mesmo dilema: ir ou ficar. Minha vontade é continuar ali entre o nosso repertório, onde falar é automático e não envolve qualquer decisão. Mas com algum esforço, me separo para começar a escrever este texto. No instante em que me afasto já começo a questionar essa decisão. Não parece sensato escolher ficar sozinha para me debruçar sobre uma linha de pensamento sem qualquer garantia de que isso será produtivo. A ideia de desistir está sempre ali, ora como um respiro pesado de obrigação por cima da nuca, obrigação de ser boa o bastante, ora como uma mão estendida sobre o infinito. Se fosse possível criar uma equação para medir o que se está em jogo em um processo criativo, provavelmente a conclusão indicaria que a satisfação não compensa os riscos e as renúncias. Mas não é possível calcular o gozo que ainda não veio e o desejo é aquilo que despreza as medidas. Por isso afasto a ansiedade, com custo, como quem tenta dissipar um zumbido insistente. Pego a caneta, abro o caderno e insisto em algum prazer físico. Porque escrever é, primeiramente, um movimento que se faz com as mãos. Ela aprecia a sensação de total concentração e desaparecimento (…) as coisas repetindo-se até não fazerem mais sentido e o som ser exatamente igual ao silêncio.

dias 5 e 6

Por dois dias, me afasto do livro. Leio algumas frases, um parágrafo e, então, fecho o livro, guardando dentro dele um ou dois dedos, marcando a página com meu próprio corpo, porque sinto que posso voltar a qualquer momento. Mas não volto. Preciso de tempo. Passo as viagens de ônibus encarando as paisagens com os olhos borrados. Pele desprendendo-se do corpo, ela se descola de si — não mais o choro de si mesma, mas o choro do mundo todo.

dia 7

Ela tem a impressão de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia. O que a salva dessa impressão sedutora e quase confortável de um fim violento é a rotina. Mas do que tudo, ela ama a rotina. Há os dias bons e os dias ruins, e isso ela pode controlar. Aos domingos, tento estabelecer o cuidado como uma rotina. Preparo minhas marmitas da semana, cuido da pele, troco lençóis, organizo o armário, faço as unhas. Sei que fui educada para tirar prazer disso e que talvez fosse preciso renunciar a esse prazer como uma forma de libertação. Mas não penso assim. Me ater a essa rotina é um prazer que posso pegar com as mãos. Em 2018, há uma urgência nas satisfações possíveis.

Neste domingo, acordo cedo, preparo meu café, passo a manhã lendo a anti penúltima seção do livro que se chama “sim”, estudo e depois vou cozinhar. Pico cebolas, amasso dentes de alho, corto legumes. Faço isso enquanto escuto um vídeo no YouTube de um canal chamado Vida Organizada: A gente só consegue falar não para as coisas quando a gente tem um sim muito grande dentro da gente. Escuto. Para o vídeo. Volto. Escuto de novo. Anoto a frase e continuo.

Por um tempo, Maria Teresa começa a acreditar que gosta mais da cozinha do que de fazer música. Não quer conhecer todos os corredores estreitos de Jerusalém, quer trabalhar, quer fazer o mesmo caminho de ida e volta todos os dias. Ela aprende que mais de uma pessoa não pode fazer o mesmo pão porque desanda e que tradicionalmente não se cozinha durante o shabat, porque cozinhar é produzir alguma coisa. Ela lava os pratos e copos e quebra as unhas, quando volta do restaurante de noite, cola unhas postiças e tenta estudar sozinha, mas se distrai com qualquer coisa, tem sono, adormece. O trabalho no restaurante parece ser menos duro, apesar de exaurir o corpo. Preparar uma comida é também lidar com os restos, organizar espaços, limpar utensílios. Fazer, limpar, consumir, limpar. Gestos afirmativos que, no entanto, passam invisíveis em um legado que se cria e se transforma diariamente. Os arranhões nas panelas parecem ser as únicas testemunhas desse tipo de esforço. Concordo com Matê, é possível ter outra vida. Nada demanda que para cada sim exista um não. Mas é assim, entre dicotomias, que foi feito este mundo e, para nós, as bifurcações são sempre mais estreitas. Cada escolha é necessariamente uma renúncia. E se quisermos ser mais maleáveis sem que isso signifique ser dobrável, fraca, submissa? Não sei. Tenho tentado algum caminho que não seja a redenção, a plenitude estática dos extremos, mas a absolvição diária, um meio pelo qual se pode transitar ambivalente. Encontrar nas pontas de cada não a potência do que posso afirmar. Ou seria o contrário? Pensa em dizer sim, mas acaba falando não.

última noite

Ela escova os cabelos, eles ficam sem nós, toma um banho de chuveiro e sente-se pronta. Pronta — não pura, mas nova de novo, como se o corpo tivesse lhe dando uma segunda chance para começar. Sempre o corpo estava lá, ora exausto, carregado de morte, ora pronto para começar de novo. O corpo se lembra. Termino a leitura como começo: Na madrugada de um domingo. Não chegamos ao fim da história, deixamos Matê no meio do caminho sem garantias dos gestos adquiridos e aprimorados pela repetição, abrindo o novo através do custo daquilo que se faz invisível até despontar em uma linha no meio do rosto. O corpo é o processo ou o corpo é tudo o que podemos produzir, um meio que passa pela história, é antecedido e ultrapassado. A arte, então, permanece, a partir da escrita de Laura, como um heroísmo físico do que se consolida pela insistência de uma escolha diária. Maria Teresa, enquanto algum tipo de heroína, não é imortal ou divina, só se aproxima de Deus justamente por ser uma mulher e por não se esquecer que é também, em princípio, um corpo, uma entre os outros animais.

Para ouvir o podcast que gravamos com Taís Bravo, clique aqui!

Esse diário foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só debater questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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