Dois contos de Maíra Valério
Contos do livro Homens que nunca conheci, publicado pela Editora Patuá
Calombo
Ela fazia sempre assim: chegava do trabalho, deitava no quarto escuro com a mão na barriga e olhava fixamente para o teto. O ventilador girava e fazia ruídos que se misturavam aos dos carros que passavam na avenida próxima ao prédio. O vidro da janela semicerrada — era preciso encontrar um meio termo entre a tentativa de isolamento acústico e a ventilação de um ambiente abafado — tremelicava, enquanto a cortina balançava suavemente para frente e para trás. Sombras semelhantes à ondas do mar dançavam na parede. As buzinadas ajudavam a afastar os pensamentos frenéticos, que se dissipavam para que pudessem se concentrar nos carros da rua acelerando feito hamsters correndo dentro de gaiolas. Correr para, no dia seguinte, correr de novo. Essa era a vida fragmentada em momentos iguais, como um filme passando incansavelmente no repeat de uma televisão antiga. O barulho do trânsito traduzia a angústia da pressa que não conseguia existir de outra forma que não presa e engarrafada — bem semelhante à pressa embarrigada que ela vivenciava e que se arrastava por meses intermináveis.
Qual o sentido de tudo isso, hein? é o que ela costumava indagar em voz alta, mas a barriga não respondia. Era estranho conversar com uma parte do próprio corpo, antropomorfizar um pedaço que crescia como se ele subitamente tivesse ganho alguma espécie de personalidade própria. Algo estava ali dentro, se formando, parasitando como ela gostava de dizer, mas as pessoas não riam desse tipo de piada. Regras tácitas eram expressas pela vizinhança por meio de olhares sisudos e cumprimentos constrangidos que indicavam que não era de bom tom uma grávida ironizar a própria situação. Nem usar maquiagem, vestido curto ou aparentar alguma espécie de vaidade para além do papel de progenitora. Ao mesmo tempo, se não passasse um batonzinho sequer, lá vinham os comentários apontando a cara de cansada com mais julgamento do que solidariedade.
Presa em uma santidade arbitrária, ela se sentia destituída de si mesma ao estar sempre sendo partida em duas: a futura mãezinha e a mulher que um dia transou, fodeu, trepou, praticou atos libidinosos.
Fez sexo.
Uma senhora que morava no apartamento ao lado costumava relembrar, sempre que a encontrava pelo prédio, que esse seria o momento mais bonito da vida dela, que ela estava maravilhosa e tudo exalaria paz, beleza e amor. No entanto, as costas doíam e as pessoas colocavam a mão na barriga a todo o momento, fazendo milhares de perguntas, como se esfregar o crescente volume por muito tempo colaborasse com o aparecimento de um gênio da lâmpada. Ela se sentia sozinha, com medo, o pai do filho não atendia as ligações, o emprego como terceirizada não dava sinais de que iria conceder licença, os dias corriam feito um rio bravo, a barriga estava cada vez maior e quem não ria de piada alguma ainda por cima exigia que ela estivesse sempre alegre — e sorrindo.
Mas um sorriso largo e puro, sem exaustão alguma estampando o rosto e incomodando a existência alheia, sem lamentações pois, oras, ela vai ser mãe, ela é forte, ela aguenta, ela tem que aguentar, ué, ela não tem o que aguentar, é tudo lindo, maravilhoso, floral, essência de baunilha, cheirinho de bebê, aguenta, é só um pontinho, é só para o seu marido não te abandonar, ah, ele já te abandonou, ah, nunca foi marido, ih, saiu abrindo as pernas, parto normal, suplemento de ácido fólico, cesárea, tons pasteis, mamadeira, óleo de amêndoas nas estrias, não passa vontade, faça dieta, coma direito, fez porque quis, que barriga enorme, não grita, Galinha Pintadinha, não morde, galo pintudinho, não reclama, cuidado com a vizinha, não larga o menino, Xuxa Só Para Baixinhos, não fica sem trabalhar, bebês não podem ver televisão, seu corpo é sagrado, lava o travesseirinho, estica o lençol, não enforca a criança, para, que isso, não, não, sim, não, sim, sem chorar, tem que amamentar, que coragem, que covardia, é tudo muito simples, é tudo muito descomplicado, é tudo muito tranquilo, vai ser a melhor fase da sua vida, você vai ser muito feliz, você é uma vagabunda, a maternidade é um dom divino. Espera só para ver.
Ainda deitada, ela respirava fundo, acendia um cigarro e fechava os olhos, torcendo para que o ventilador de teto, tão antigo e empoeirado, finalmente se soltasse e caísse bem em cima da própria cabeça.
Dandayamana Dhanurasana
Depois que inventaram esse negócio de que não adianta fazer yoga sem dar bom dia para o porteiro, a vida de Firmino virou um inferno. Já não bastava a encheção de saco dos senhores barrigudos do prédio querendo controlar os peidos uns dos outros numa espécie de disputa territorial e busca por emoções fortes por meio de interfonadas diárias repletas de reclamações, agora todos os jovenzinhos meio ripongos do Residencial Florida II também fazem questão de puxar papo com o homem.
Eles costumam se aproximar com a boca cheia de dentes à mostra e aquela satisfação narcísica de quem se acha muito benevolente por arrumar um tempinho na própria rotina atribulada para conversar até mesmo com o encarregado de portaria. Dia desses chegou um dos moradores mais falantes com uma turma de amigos, o André, e nessas situações é ainda pior: o show tem uma duração maior porque a pessoa precisa deixar a própria generosidade explícita para os comparsas ao redor.
Firmino sempre se sente parte de um pequeno espetáculo escolar que ele nunca realmente aceitou participar, um teatrinho amador e compulsório que afaga o senso de altruísmo alheio enquanto ele perde preciosos minutos que poderiam estar sendo utilizados em qualquer outra atividade. Sei lá. Tirar um cochilo, coçar o ouvido com uma tampa de caneta, ler um livro, olhar para o nada. Tudo isso seria melhor do que assistir a um filme em que o roteiro é sempre o mesmo: André fala de futebol, comenta a novela, pergunta como está o filhão de Firmino e dá vigorosos tapinhas nas costas do amigão, em uma intimidade forçada quase intimidadora e cheia de aumentativos que escondem uma relação diminuta.
Cansado de repetir que não assiste novela, odeia futebol, é solteiro, sem filhos e nunca foi muito chegado em contatos físicos exacerbados, o porteiro apenas sorri amarelo e responde qualquer coisa que encurte logo o papo, enquanto imagina André fazendo um Dandayamana Dhanurasana e esticando o pé até enfiar no próprio cu.
Maíra Valério
É cria do fim da década de 80 e uma jornalista brasiliense que acredita na rapaziada, na mulherada e na cultura do-it-yourself. Ama frequentar lugares repetidos e mergulhar nas particularidades e anseios dos indivíduos que povoam esse planeta; especializou-se em gênero, sexualidade e direitos humanos; pesquisa mídia, mulher e envelhecimento no mestrado; teve o próprio caráter moldado por livrarias, shows punk e festas gay; é ansiosa, extrovertímida, hipocondríaca e escreve em zines, blogs, revistas, jornais, sites, bloco de notas do celular, cadernos, diários, papeis que encontra pelo chão e o onde mais der. Homens que nunca conheci é o primeiro livro dela e você pode adquirir clicando aqui.
Esses contos foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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