Ilustração por Adams Carvalho.

Em algum lugar os pássaros cantam

O revólver, silencioso na coxa e depois na gaveta, quando veste a camisola

RIDÍCULA
Mulheres que Escrevem
6 min readMar 14, 2018

--

Ela não pega o sanduíche de calabresa, porque sabe o que acontece a seguir. No caixa tem um senhorzinho, com cara de avô, um punhado de verrugas pontilhadas ao redor dos olhos. Ele vai passar a língua pelos lábios secos, com um brilho de Papai Noel no olhar e depois vai dizer o de sempre.

— Gosta duma calabresa, né, dona?

Às vezes, o de sempre ganha um complemento:

— Tenho outra calabresa pra você, no dia que você quiser. Quando quiser fugir desse frio da madrugada.

Sente a carícia do revólver contra a coxa. Algumas vezes, tira o metal do coldre em pensamento e faz com que o velho engula a calabresa inteira, de uma só vez. Pra ele respeitar seu uniforme. E o que há debaixo dele: Yolanda. Em vez disso, pega um sanduíche natural de atum e um suco de lata. A decepção surge por um segundo no rosto do caixa, mas logo se apaga. Por que escolheu justo aquele suco?

— Ê, dona, sabe que eu gosto de chupar uma manga?

A fruta tem a mesma cor do sorriso de Yolanda. As portas da conveniência pressentem seu rosto e se abrem pra que ela chegue ao estacionamento do posto. Dentro do carro também está frio. Com um giro da chave, faz o veículo ronronar, o aquecedor aleitando a parte inferior dos vidros. Uma música começa a tocar, uma voz chorosa de mulher. Se estivesse ali, Jonas trocaria a estação. Colocaria em um másculo noticiário. Mas aquela não era a viatura policial que eles dividiam. Era só dela. O suco faz clec quando ela abre. Doce. Enjoativo. Faz inchar o pedaço de pão na sua boca. Tem uma fatia extra de pão entre as outras duas. É um sanduíche de sanduíche. Comeria melhor em casa, mas Dráuzio sai somente às 6h e tem o pior humor ao acordar. A acusa de trazer com ela os barulhos da rua, de roubar minutos do seu precioso sono, quando pisa e se despe e respira. De acordar a casa com a bateria de garfo no prato. De querer prejudicá-lo com a TV, ainda que o volume pinte apenas um quadradinho na tela. O revólver, silencioso na coxa e depois na gaveta, quando veste a camisola. Aqui, ela pode mastigar na altura que quiser. Cantar Cindy Lauper de boca cheia, com o neon vermelho e amarelo do posto a criar uma atmosfera de boate.

Um carro cheio de bêbados encosta perto da entrada da conveniência. Três rapazes e uma garota, vestidos com blusas leves demais, com o fogo da bebida a mantê-los quentes. Comem sem pressa os salgados escolhidos na estufa. O amarelo da mostarda explode na boca do rapaz mais alto, que tentava abrir um sachê com os dentes. A garota espalha ainda mais os respingos com o dedo em seu rosto. Riem. Ainda não tomaram o suficiente para alcançar a melancolia. Ou a fúria. Os colegas de delegacia de Yolanda estariam ansiosos para revistá-los, dar um sustinho, em especial na garota. Lágrimas, tremores, um sutiã que pode esconder um baseado, tantas alegrias em revistar uma garota às cinco da manhã. Yolanda é a chata que rouba essa pequenina alegria. Se há uma policial mulher, a suspeita pode exigir que ela faça a revista. Por isso não gostam dela. Apalpam menos sutiãs. Pensam que, no momento mais necessário, seus dedos de mulher vão ser delicados demais para apertar um gatilho. Que vão morrer porque ela tem dedos macios cheirando lavanda.

No outro canto do estacionamento, para um outro carro. Golzinho vermelho. Um vulto visível pelo pára-brisa condensado. Se remexe ali dentro e passam alguns segundos antes de sair, mãos enfiadas fundo, tão fundo, no casaco. Vapor continua a sair do escapamento. O motorista não desligou o carro. Ela quer dar a ré, porque sabe o que vem a seguir. O vulto cruza com os jovens que saem, dando risada. São cinco da manhã em um posto de gasolina e ela já está fora do serviço. Sem cobertura. O pão macio do sanduíche de atum preenche todas as ranhuras do seu céu da boca. Agora, o que vem a seguir chegou. A arma a um palmo do nariz do velho. Os dedos viram borracha, se atrapalham com as chaves da caixa registradora , deixam cair o chaveiro duas vezes. Do telefone pessoal, liga pra delegacia. Depois, silenciosa, sai do carro abaixada, arma na mão.

O senhorzinho treme, deixa cair as notas do caixa e se abaixa para pegar uma a uma sob a mira do revólver. O assaltante berra, quer sair dali, mas o velho tem dificuldades para se mover e demora mais a cada nota que pega e bota na sacola. Um tiro faz voar uma nuvem de pó amarelo. A vítima: um saco tamanho grande de Doritos. O assassinato de três ou quatro salgados faz com que o reumatismo do velho desapareça. É um milagre. Foram 4 balas de um tambor onde cabem 6, Yolanda calcula. Uma pra ela. Uma pro velho. Ela tem todas. O chão da loja está limpo do dinheiro e o assaltante empurra o velho para os fundos em busca de um cofre ou coisa parecida. Ela entra silenciosa, o mesmo passo que usa para não acordar Dráuzio na madrugada. Onde estão esses reforços que não chegam? Brinca de esconder, ziguezagueia de uma superfície a outra: atrás da coluna, atrás do balcão, atrás da porta, atrás do totem de Red Bulls empilhados, o corredorzinho que leva ao escritório não tem escudo, mas tem escuro. De costas para a porta, o assaltante aponta a arma para o senhorzinho que tenta abrir o cofre com dedos suados escorregando a todo momento. É como na música da infância. Ela no assaltante, o assaltante no velho, o velho no cofre e a velha a fiar. Tenta respirar devagar, com medo de ser ouvida. O capuz gira um pouco e então mais, percebendo num susto alguém ali atrás. No segundo de confusão, alongado muitas vezes pela adrenalina, Yolanda faz o que treinou muitas vezes, abaixa e torce o braço do oponente até que largue a arma. Ele vê a dela apontada para a nuca e se sujeita a deitar no chão, enquanto o funcionário do posto chora, ranho escorrendo até a boca, chora e agradece e — quando ela manda — afasta com o pé o revolver caído.

Em poucos minutos, chegam os colegas do turno seguinte, e daí tudo corre como ela está acostumada. Sabe sempre o que vem a seguir. Algemas, B.O., perguntas. Um policial bem mais novo quer saber o que ela está fazendo ali e toma a arma da sua mão. Paciente, Yolanda explica que é sua colega e que pode buscar o distintivo, se ele a acompanhar até o carro. Ele concorda, mas não sem antes revistá-la contra a parede, mãos demorando mais do que o necessário para detectar a dureza de um metal debaixo de um pano. O distintivo está jogado aberto no banco do passageiro e o colega confere, assente e volta para dentro do posto sem pedir desculpas.

No porta-copos do carro está o seu suco, agora quente, de manga. O amanhecer pinta de tons alaranjados a van branca de uma rede televisiva que estaciona com pressa por ali. Ainda deve haver árvores perto do posto de gasolina, porque em algum lugar os pássaros cantam. Morde outra vez o que resta do sanduíche, procura uma música boa no rádio. São quinze paras as seis da manhã e o Dráuzio ainda está em casa.

Para ouvir o podcast que gravamos com Nathalie Lourenço, clique aqui!

Gostou? Conheça outros contos no livro Morri por Educação (Ed. Oito e Meio), agora disponível em e-book.

Esse conto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter

--

--

RIDÍCULA
Mulheres que Escrevem

Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco