Em defesa da vida: uma leitura de Necrobrasília, de Tatiana Pequeno

Helena Zelic
Mulheres que Escrevem
8 min readSep 2, 2020

Estamos vivendo tempos em que a defesa da vida se escancara como o fundamento das lutas sociais. A luta de classes sempre foi marcada pela luta pela sobrevivência, mas, agora, a partir desta enorme e alastrada urgência pandêmica, o cuidado se evidencia como a chave para sustentar a vida — tanto a nossa vida coletiva e interdependente quanto as mais de cem mil vidas que já perdemos, uma por uma, pessoa por pessoa, nome por nome. Para defender a vida, é preciso denunciar as forças políticas e econômicas que a atacam insistentemente. No Brasil, é preciso denunciar a política de morte que se instalou na presidência, que controla o mercado e os demais poderes institucionais e extrainstitucionais.

Por isso, quero propor que olhemos com atenção para o poema necrobrasília, de Tatiana Pequeno, que encerra o livro Onde estão as bombas (Macondo, 2019, disponibilizado em pdf aqui). A obra de Tatiana Pequeno é densa. Isso já se via em sua produção anterior, como nos poemas encadeados, muito imagéticos, de Aceno. Em Onde estão as bombas, o encadeamento ainda é uma chave para entender o funcionamento de sua produção, mas desta vez o caminho traçado é mais explosivo — assim como anda ainda mais explosivo o país e o mundo nos últimos anos, tempo marcado na obra. Os poemas mais narrativos deste livro têm alguns elementos em comum, entre procedimentos da linguagem e dos temas, ancorados no que há de coletivo na experiência pessoal, nostálgica ou comunitária. É por aí que Tatiana vai ligando os fiozinhos que conduzem às explosões.

Há muito o que dizer sobre o livro — e há um tanto já dito, pela própria Tatiana neste vídeo e também por Alberto Pucheu no posfácio do livro. Aqui, nesse texto, vou me deter em necrobrasília. Fincado em um tempo específico, o poema prova que o circunstancial e o conjuntural são parte da estrutura. Por isso, não se perdem no tempo: se atualizam. O poema fecha o livro e nos deixa com a pergunta que responde ao anseio coletivo da luta pela vida. O poema expõe nossos inimigos, nossas misérias e, ao fazê-lo, descreve como é viver. Postula, escondido, o direito a uma vida que valha a pena ser vivida. Segue:

Uma partida imperativa e ambígua
A colagem do verso “como iremos embora” em diferentes momentos do poema gera um efeito de retomada. A repetição é responsável pelo aprofundamento do problema, como se mais camadas de obstáculos fossem visibilizadas. A pergunta “como iremos embora”, repetida insistentemente no poema, responde também a um imperativo oculto, mas velho conhecido nosso: aquele(s) que diz(em), frequentemente, “vão embora!”. Quando olhamos fotos de arquivo do período da ditadura militar, vemos cartazes com o mesmo “vai pra Cuba!” que enfrentamos nos tempos de hoje com a escalada autoritária da extrema-direita. Estamos presos em uma disputa que não chegou nem perto de ser superada. O poema traz pistas, a partir dos obstáculos enfrentados, deste contexto político-social que, assim como a pergunta central, também é repetitivo (“neste dia do aniversário/ 55 anos do golpe militar”). A presença do autoritarismo (seus ecos históricos e ele mesmo concretizado no presente) desestabiliza aquela vida simples que descrita pelo poema, posicionada como contexto social e, talvez possa se dizer, também reivindicada.

É um domingo, ela está em casa e, mesmo assim, não há paz, pois é 2019. A repetição expõe o fluxo de pensamento do desespero perante a expulsão. A repetição de “na condição de” e da pergunta “quem molhará as plantas?/ quem retirará a poeira dos livros?” também funciona para acentuar a somatória dos obstáculos e para localizar seu lugar social, tanto o ocupado (a casa, a aula, o subúrbio) quanto o por ocupar (“refugiadas”, “fugitivas”, “sobreviventes”). A condição desse sujeito coletivo, que se expressa pela primeira pessoa do plural, é a da rua sem saída, onde não há uma perspectiva feliz para o presente “aqui” e também não há para onde ir. Dizem o tempo todo que é preciso partir, mas as condições materiais não se sustentam, tampouco há um destino milagroso.

Faz parte da apresentação desta dúvida uma ambiguidade, que se repete durante todo o poema: a palavra “embora”, que significa tanto “ir embora” (ou seja, um advérbio que complementa a ideia de partir) quanto “ir, embora…” (como conjunção no sentido de “ainda que”). Como a própria autora anuncia, é “tipo uma pergunta mas/ também uma solução/ deixar o aglutinado de/ palavras livres sem pontuação” mesmo jogo usado para o título do livro, que, sem pontuação, pergunta onde estão as bombas e também anuncia: as bombas estão aqui. Sobre aqueles versos, também vale propor que, de alguma forma, relacionar “pergunta” e “solução”, formando uma rima com “pontuação”, se aproxima e também se diferencia de quando Drummond, no Poema de sete faces, escreve que “se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”. Parece que, para Tatiana, o poema é capaz de solucionar, senão os males do mundo, pelo menos o posicionamento necessário para encarar o mundo. O poema, com suas letras aglutinadas, é um ponto de encontro.

Neste poema, Tatiana expõe o processo de escrita da mesma forma como expõe a tentativa, em processo, de responder à necessidade de ir embora. A ambiguidade se acentua às vezes mais, às vezes menos no poema de acordo com as construções sintáticas, e, quando funciona, facilita a conotação de ida com obstáculos.

O engendramento de sentido

O encavalgamento de versos é uma constante nos poemas de Tatiana Pequeno. Em necrobrasília, em específico, há encavalgamentos em pelo menos metade dos versos (ou seja, há cortes de verso em sentenças que têm continuação direta entre si, alterando a aquisição do sentido). No poema, eles são responsáveis por acumular sentidos, como é o caso de “dura/ a catástrofe e uma aula precisa/ ser dada entre as ruínas”, “vamos embora tocados/ pela rapidez das varas”. Junto a isso, os cortes geram também um estranhamento no ritmo da leitura, descontinuando-o, como um obstáculo.

O encavalgamento se radicaliza quando os cortes passam das sentenças para as palavras: “pre/ feridos”, “e as nossas bolsas pare/ cerão pesadas”. As unidades de sentido de cada verso são então mais do que exponenciadas; são responsáveis pela criação sintética de outros sentidos, criados na relação entre as expectativas de quem lê, a interrupção do texto e a materialização das duas imagens contidas no verso (e das demais que ele assim gerar).

O engendramento, ou seja, a criação, a possibilidade de existência, é no poema uma busca ativa de Tatiana. Isso se dá tanto pela criação dos sentidos no nível da linguagem propriamente dita, quanto pelos elementos do conteúdo que são engendrados por ela, quero dizer, que só existem porque foram criados por ela: os gatos, as plantas, a coleção de livros, os chás. E tudo isso é pequeno e particular, mas tudo isso importa. Aprendi o verbo “engendrar” ouvindo Caetano Veloso cantar “veja essas novas pessoas que nós engendramos em nós e de nós”. E, assim como na canção, por mais que haja força bruta, empenhada em apagar aquilo que foi criado, Tatiana resiste em deixar para trás tudo aquilo que criou e que a fez, também, ser quem é.

Repetição, procedimento do acúmulo

A bagagem é grande: são as coisas acumuladas, as vidas interdependentes e o próprio modo de vida que quer ser resguardado, contra todos os motivos que fazem os “cabelos voltarem a cair”. A repetição é um procedimento que reforça esses dois elementos marcados no poema: a bagagem e o obstáculo. O poema pergunta insistentemente qual seria a “resposta correta” para quem não pode ir. Ela mesma chega a ensaiar a partida; arruma suas sacolas, mas são muitos os obstáculos do lado de lá, é muita a própria bagagem e as vidas por cuidar. Me lembro do impacto dos versos de Lubi Prates “ninguém notou,/ mas minha mala pesa tanto”, que falam de um outro problema social marcado em nossa história passada e presente, mas que, aqui, chama a atenção por isso: as mulheres sempre sendo expulsas, mas sempre carregando suas bagagens, que articulam as dimensões de gênero, raça, classe. Não à toa, pelas florestas e campos de toda a América, são as mulheres também as principais guardiãs de sementes, um trabalho invisível que garante a diversidade e a manutenção da vida coletiva.

De forma complementar aos encavalgamentos, o isolamento das palavras “diferentes”, “dura”, ameaçadas”, “perguntas”, “sobrenome”, “afinal,”, “casa?”, sozinhas no verso, acontece geralmente nas palavras que finalizam as sentenças (com exceção de “afinal,”). O isolamento destaca a palavra na leitura, criando para ela um tempo mais estendido. Nos faz ler com mais intensidade a palavra “casa” e tudo o que ela significa. Nos faz questionar a importância dos sobrenomes como marca de classe e raça. Nos facilita a identificação da urgência da pergunta.

De forma mais radical, a suspensão na página dos versos finais é o corte da frase “para onde vamos?” em quatro linhas, com separação de estrofe entre cada signo. As palavras escorregam cada vez mais para a direita e no final, a frase volta, em “?”, para a margem esquerda. A pergunta é lançada, em seu momento final, como um bumerangue. No poema, essa suspensão é uma distensão no tempo e uma ferramenta de ênfase, mais radical ainda do que o isolamento de palavras. Além do tempo, gera uma desorientação no eixo do espaço, o que é muito conveniente para a pergunta “para onde vamos?”. Ao montar este arco com as palavras, esta ida e volta, Tatiana está impondo à página a demonstração da partida impossível, da armadilha das soluções individuais, e retoma o lugar onde é preciso estar.

Um poema pela vida

Esses são apenas alguns elementos iniciais na leitura de Necrobrasília. São alguns dos procedimentos mobilizados por Tatiana para localizar não só no texto, mas em nós, leitoras e leitores, o lugar que a revolta ocupa. É uma revolta sobre aquele poder baseado na morte, que habita hoje o país com o governo de Bolsonaro, e que é hegemônico no mundo nos governos e no mercado.

Esse poder acirra o conflito do capital contra a vida, marcada pela classe, pela raça, pelo gênero, pela sexualidade. Esse poder põe em curso a necropolítica, que a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, no último 25 de julho, sintetizou e recusou através da consigna “nem cárcere, nem tiro, nem covid: corpos negros vivos”.

O poema, ao negar ser rendido à necropolítica brasileira, se posiciona ao lado da vida. É o enfrentamento às falsas soluções. É a reivindicação de um espaço-tempo feito por nós como somos, enquanto sujeito coletivo que não se rende com facilidade.

Comecei a esboçar este texto para uma oficina de crítica literária, e muitas ideias sobre o livro devo a esta turma. Escolhi seguir esta escrita porque admiro a obra de Tatiana, seu olhar crítico e incisivo sobre as coisas e sua generosidade. E porque este é um livro importante de ser lido, um livro que mexe com a gente e expõe a urgência das bombas.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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