Escrevendo sobre depressão sem glamour — ou, como não adornar a dor.

Cristina Parga
Mulheres que Escrevem
6 min readNov 22, 2016

Tudo começa com um pedido de texto. O tema: corpo. Tudo que eu gostaria que não existisse. Essa carcaça que me define. Que me prende à terra. Que atrai o olhar e, com ele, o julgamento.

A pele é uma fronteira que eu não queria ter. Sendo uma com o mundo, talvez o toque dos pés no chão não doesse tanto. Invisível, seguiria inscrevendo-me na escrita e existindo ao insistir no risco do papel.

Ambivalente. Uma hora aliviada, outra hora em pânico por ter perdido o controle. Lutando todo santo dia, toda hora, a cada minuto — só eu, meu estômago, cabeça. Supermercado. Bares a qualquer esquina. A cartela cheia, a cartela vazia. O travesseiro.

Se quando escrevo sobre dor e sofrimento pessoal, acabo adornando a dor e, consequentemente, seduzindo alguém para esse dark side, juro que me esforcei, muito — durante quase toda a minha vida adulta — para não fazê-lo.

E sim, sei que esforço não é suficiente; o que importa é o resultado. Infelizmente, às vezes falhamos. Ou muitas vezes. Eu. Falho.
E feio.

Quando sentei para escrever o tal texto, surgiu na memória um artigo do New York Times review, que encontrei há uns anos; uma resenha de um memoir de uma "ex anoréxica"(entre aspas mesmo; se não entendeu, pergunte-me como e pq). Esse tipo de produto Girl, interrupted alike devia ainda estar na moda na época. A onda já passou, mas há outras; os produtos seguem com novas embalagens e a mesma essência, não se enganem. Não tenho mais o link, mas lembro do ponto crucial:

o quão ético era soltar no mercado narrativas cujo núcleo duro beirava a glamourização e a fetichização do fundo do poço? Livros que ora colocam o leitor no lugar de voyeur mórbido ora de mais um candidato a entrar naquele clube de gente pálida, sofrida, misteriosa, como se fosse uma claque de cheerleaders góticas?

A estrutura narrativa desses livros é sempre a mesma, classicamente fisgante para o público alvo: pais cegos e surdos, amizades rasas (ou MUITO intensas), maratonas desumanas de provas na escola, uma luta sem fim, cada vez mais difícil, para manter o desempenho e o sorriso no rosto e nas fotos do Instagram. Convenhamos, com esse plot, qualquer adolescente se identifica.

Então alguma pequena gota d' água — fim de namoro/amizade, morte de um parente — faz o copo transbordar e pronto, começa a descrição do período de sofrimento, descoberta da doença, recusa em se tratar (quem quer ser normal, não é mesmo?), e, bem lá no fim, um breve relato (em duas a 3 páginas ou até mesmo poucos parágrafos) de como a pessoa se recuperou — ou só essa informação, assim, meio jogada, sem muita elaboração.

Como testemunho e autobiografia, se o autor desabafa o que o oprime, está valendo. Quem sou eu para dizer o que as pessoas devem passar para o papel ou não?

Como literatura, a resenhista achava golpe baixo. E eu me debato muito, mas algo aqui dentro sente que ela tem razão. Ou ao menos, uma boa razão.

É estranho; não vejo muita gente lutando por vagas no Narcóticos Anônimos. Poucos filmes falam do AA como um clube do qual gostaríamos de fazer parte; poucas pessoas públicas expõem que são membros ou que frequentam esses grupos. No caso da depressão, ansiedade e distúrbios alimentares ou de imagem corporal,o que devia ser estigma às vezes parece medalha. Parece que anunciar que se sofre de uma dessas doenças é dizer que se faz parte de um núcleo seleto de pessoas especiais, machucadas pela sociedade que não as compreende, que as violenta o tempo todo com a sua dureza.

Afinal, quantas meninas não usavam o nickname Susanna Kaysen, ou idealizaram um hospício como um lugar de férias mental, onde se poderia conhecer gente interessante, escrever um diário publicável e/ou encontrar uma partner in crime como a representada pela Angelina Jolie? Quantas ainda não usam?

Em um clássico do gênero, Prozac Nation, a narradora/autora Elizabeth Würtzel não parece tão sedutora. A autobiografia relata como um início de semestre animadíssimo na faculdade foi se tornando, de repente, numa sequência de dias em que a narradora mal sai do quarto e passa noites rabiscando o que pensa serem obras-primas — sem tomar banho, sendo rude e estúpida com as pessoas doces que insistem em permanecer à sua volta. Trocando em miúdos, o livro descreve bem um ciclo de bipolaridade: como a fase maníaca se desenvolve e vai aos poucos se desenrolando até jogar a pessoa na depressão major, em que nem a forma mais básica de dignidade pessoal (digamos, a higiene) — faz qualquer sentido. Engraçado; com essa faceta (tão real) da depressão, ninguém quer se identificar.

O ponto da resenhista era o quanto é delicado escrever sobre doenças tão glamourizadas pela mídia. O quanto é difícil falar sobre dor psíquica sem se colocar numa posição especial de hipersensível, de frágil e precioso. E como é difícil fazer literatura, com responsabilidade e sem oportunismo, com esse material.

Como escrever sobre corpo e mente sem adornar a dor, sem fazer com que uma condição limitante soe sedutora — afinal, o que eu menos desejo é compactuar com a romantização ou glamourização da dor, da depressão, de distúrbios alimentares, de fobia social? Como escrever sobre sofrimento psíquico tendo como princípio não colaborar para o surgimento de uma nova geração de Manic pixie dream girls?

Na minha vida pessoal, vou e volto entre o rosa pink e o céu mais negro, mas, embora isso se reflita inconscientemente no que escrevo (como o fato de eu beber café ou ter comido pão de queijo ou estar com cólicas se reflete), me esforço. Para não expôr feridas abertas, e deixar o material cru num diário engavetado. Para não ganhar plateia com isso. Para não fazer com que outras pessoas pensem que há algo a ganhar com isso.

Porque não, não há. É só limitante. É só algo que faz as pessoas à nossa volta infelizes. Traz autoconhecimento — claro; mas análise, aulas de desenho, de canto, de dança também trazem. De um jeito mais construtivo. Não é preciso se des(cons)truir para ter acesso às verdadeiras qualidades. É preciso saber ver, e se a depressão e outros problemas psíquicos aguçam o olhar, ler poesia também o faz. Repito, há outras formas.

Ontem estreou na web (ou começaram a falar disso; ando meio fora das redes) mais um filme sobre distúrbios alimentares, onde a protagonista é obviamente uma menina branca, heterossexual e rica, o que está muito longe do que se vê nas alas dos hospitais. Em pleno 2016, ainda há meninas vendo Girl, interrupted no netflix. 2016, e ainda vejo avatares de Effies e Cassies (skins) em fóruns e comunidades online. Meninas e meninos sofrendo por não se sentirem especiais, num mundo que realmente exige que sejamos brilhantes. Mesmo que nosso grande brilho esteja no fato de termos um problema psíquico.

Quando foi que nos venderam a ideia de que ficar doente é uma linha de fuga? Que uma doença faz de alguém algo singular?

I am myself, that's not enough, já dizia Sylvia. Se ela sentia isso, convenhamos, nem você nem eu somos especiais por estarmos pra baixo. Pode ter sido a dor e a doença a moverem a poeta a escrever, o que, por sua vez, a levou ao estatuto que tem até hoje. Mas não seja ingênuo/a de ignorar todo o esforço, estudo, trabalho de escrita e reescrita por trás de poemas breves ou de curtos versinhos. Procura os diários dela, da Alejandra, as cartas da Virginia — muita coisa está lá. Há planos de escrita, cronogramas, diários da progressão na pesquisa — anotações de mulheres que levavam muito a sério o próprio ofício da escrita. Pouco lugar para autocomiseração. Quando ela existe, é bem trabalhada em ironia ou versos certeiros. Não é gratuita. Não busca palmadinhas nas costas.

Minha avó costumava contar de uma amiga de escola, numa aldeia minúscula do interior de Portugal, que morreu de uma doença nos pulmões e bebia vinagre para emagrecer. Minha avó me contava meio fascinada. É lógico que eu, criança, ouvia com o mesmo fascínio.

Problemas psíquicos não nascem nem de livros nem de filmes, claro. Mas há um imaginário enorme que atrai pessoas para o tema, e podíamos pelo menos tentar parar de alimentá-lo com novos elementos.

Podíamos, pelo menos, tentar.

--

--

Cristina Parga
Mulheres que Escrevem

Tradutora, revisora, copidesque. Autora de "Clearblue Blues" (Urutau, 2024) “Qualquer areia é terra firme” (7letras, 2015) e “furta-cores” (7letras 2012).