Estratégias para gostar de Ana Guadalupe

Um diário-mapa de leitura

Layse Barnabé de Moraes
Mulheres que Escrevem
4 min readNov 6, 2018

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Ana Guadalupe

Eu conheci os poemas de Ana Guadalupe há quase 10 anos e, à primeira vista, eles não me pegaram. Eu era ainda uma jovem estudante de Letras apegada a trechos bonitos & grandiosos, os quais grifava e guardava, como quem guarda um segredo. Aqueles poemas, feitos de tique nervoso, bigornas, pianos, travesseiros, persianas, calçadas, palitos de dente, mocassins e facas não me saltaram aos olhos — eram só escritos de uma jovem poeta paranaense, minha conterrânea.

“às vezes sinto sua falta
mas a impressão passa
antes que de fato falte qualquer coisa
por exemplo uma faca sobre a mesa”

Mais tarde, percebi que Ana tem um humor próprio e uma auto ironia fina que talvez exijam uma não ingenuidade só alcançada com a passagem do tempo, o que me aproximou de sua obra e trouxe suas palavras para dentro dos meus grifos e notas de rodapé.

“não trouxe frases macias nas malas.”

Talvez de um jeito meio contraditório, Ana também transita por certo tom confessional que não tem medo de ser ingênuo. É preciso estar atenta ao que não é óbvio para ler Ana Guadalupe. Seus objetos escolhidos e suas imagens poéticas não se encaixam fácil. Cada verso excêntrico é esconderijo para o que vem depois, sempre uma surpresa — às vezes ruptura, às vezes conclusão.

“vamos perder o contato?
já que não há motivo para mantê-lo
por meio de encontros e recados
se a cada dia acordamos outro
e não vamos manter nem em sonho
nosso outro de ontem

outrora foi mais fácil
cortar os laços todos

vamos retomar e perder o contato
só no arquivo permanente do passado
o outro ficará pra sempre guardado
prêmio que apenas antecipamos
cromo raríssimo
pacote intacto”

“Gosto muito de ler e escrever poema, fazer o quê”

”Minha relação com a poesia sempre foi marcada por um leve constrangimento. Gosto muito de ler e escrever poema, fazer o que, mas, mesmo depois de todos esses anos, ainda fico um pouco sem graça”, ela diz no seu projeto de financiamento coletivo apoia.se.

Ana escreve como quem pede desculpas por ser poeta, mas não deveria. Ou deveria, visto que é exatamente esse efeito quase autodepreciativo que faz o leitor rir da desgraça e da beleza do banal. É quase como se ela estendesse a mão ou mesmo se ajoelhasse, deixando para lá a pompa de poeta, encarando o leitor direto nos olhos: “venha comigo, é preciso falar de janelas basculantes, caixas de pornôs e primeiros socorros”.

Na poética de Ana, o que não é matéria clássica da poesia escapa e vira verso. Não por acaso, seu primeiro livro tem nome de objeto ordinário: Relógio de pulso. O segundo, Não conheço ninguém que não seja artista, em parceria com a fotógrafa Camila Svenson, brinca com a ideia do poeta e do fazer poético envoltos em uma dimensão simples, convocando o leitor a participar do jogo:

“(sinta-se à vontade para customizar essa página
caso haja urgência de produzir sua arte
antes do término da leitura)”

Lendo os poemas do segundo volume, logo se conclui que a simplicidade na verdade não passa de um grande engano. Ana só finge que é simples. Ou melhor: Ana se apropria de temas, objetos e espaços do cotidiano contemporâneo (a internet, o reality show, o hospital, a cidade), mas trabalha na construção de uma forma não óbvia, sagaz, ácida e sutilmente debochada.

Uma poeta preocupada

Ana é uma poeta corajosa, econômica e preocupada. Cata palavras e ganha: escolhe bem. Seu próximo livro tem como título provisório Preocupações e outros poemas. Nada mais adequado, afinal.

Em uma palestra na qual a vi falar, ela contou que fazia livros na escola como um passatempo, visto que, segundo ela, não se destacava em outras coisas: “Não tinha proficiência em quase nada”. Ana se esforça para ser detestável, mas falha: é adorável. Seus poemas seguem na mesma linha.

Apontada por Heloísa Buarque de Hollanda em Otra línea de fuego — Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas, escolhida para compor a Antologia Incompleta da poesia contemporânea brasileira, de Adriana Calcanhotto, e publicada em muitas revistas e sites por aí, são indícios suficientes para afirmar que a obra de Ana, apesar de ainda enxuta, já está legitimada e tende a continuar nesse caminho.
Seu tom autodepreciativo talvez seja, no final das contas, uma forma de se proteger do peso da poeta que, lá no começo do primário, ela já sabia que seria. Mesmo flertando com esse não lugar, Ana segue, como ela mesma disse, “na imprevisível aventura da poesia”.

Do livro Relógio de pulso

Esse texto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Layse Barnabé de Moraes
Mulheres que Escrevem

Jornalista, Mestra em Letras e Doutoranda em Estudos Literários (UEL). Divido escritos, leituras e mais travessias no https://www.instagram.com/coracaononsense/