“Meu desafio é escrever a loucura que é uma mulher viril”

Mulheres que escrevem entrevista Seane Melo

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
10 min readJul 28, 2017

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Foto: Yuri Goytacaz

Seane Melo, colaboradora da Mulheres que Escrevem, lançou recentemente seu primeiro livro, Ao vivo em Goiânia — quatro contos de patroa. Para celebrar essa importante realização realizamos uma entrevista com a autora dos melhores contos eróticos desta plataforma.

Seane, conta pra gente como foi o processo de se descobrir escritora? Em que momento da sua vida você descobriu que era isso que queria fazer? O que te despertou o interesse pela escrita?

A escrita sempre fez parte da minha vida e do que me imaginava fazendo, ela motivou mais a minha escolha pelo Jornalismo que qualquer paixão por notícias ou vontade de informar. De alguma forma, desde cedo, tinha consciência de que o acesso à posição de escritor (e sempre pensamos no escritor publicado por uma grande editora quando usamos esse termo, né?) não era fácil e talvez exigisse repertórios, contatos e disposições que eu não tinha. Sem falar no talento, essa noção que mesmo desconstruída não para de nos atormentar. Assim, quando tive que optar por uma carreira, tentei ser realista e optar pelo salário na conta todo mês; escrever um livro era algo que, eu pensava, ia acontecer em algum momento da vida.

Então descobri muito cedo que queria escrever, mas demorei 26 anos para descobrir que podia ser escritora. E só descobri isso quando saí da zona de conforto, quando me expus e expus meu trabalho. Acho que assinar conteúdo erótico com o meu próprio nome foi algo que escolhi pra mostrar que levava aquilo a sério.

E o encontro com a literatura erótica como aconteceu?

Isso eu não posso falar que gostei desde sempre, né? Brincadeira. Bom, talvez o primeiro erótico que li na vida foi um gibi, desses Sabrina, que a minha mãe devorava. Engraçado que eles rondavam toda a casa, minha mãe lia quase um por dia, mas eu não tinha interesse por aquelas capas com homens de peitoral de fora. O que li me chamou atenção porque envolvia um nutricionista e tinha um título como “O tempero do amor”. Quando entrei no ensino médio, tive acesso a mais dois livros, ambos confessionais, escritos por mulheres, uma viciada em sexo, outra prostituta. Achava tudo meio sensacionalista, o que mais me interessava era aprender os nomes das posições.

Quando comecei a responder essa pergunta, tinha imaginado simplesmente responder que o livro erótico que me deixou apaixonada pelo gênero foi o Pornopopeia, de Reinaldo Moraes. Mas, antes mesmo de ler, já tinha desenvolvido esse interesse pelo erótico. Acontece que nunca assistia pornô, o pornô tradicional heterossexual é pouco apelativo pra mim, (sem falar no constrangimento de me ver molhada com coisas que não deveriam excitar), mas adorava ver sexo nos filmes, nem que fosse por cinco segundos. Um dia, baixei um filme cult, porque vi que a sinopse falava de questões sexuais. Era um filme bem ruim, mas, no meio, tinha uma cena de BDSM com quatro pessoas. Meu namorado na época me perguntou se aquilo me deixava excitada, disse que não e devolvi a pergunta. Ele também respondeu que não e sugeriu que a gente fizesse outra coisa. Claro que estávamos mortos de excitados, mas ninguém deu o braço a torcer. Acho que o erótico, especialmente a literatura, foi a forma que descobri de conhecer (ou ficar cheia de dúvidas sobre) o meu desejo sem me sentir culpada por consumir “pornô”. Depois, se tornou algo maior pra mim: é um lugar de reflexão.

Há mais de um ano você publica contos no Medium com alguma regularidade. Quais eram suas motivações quando você começou a usar essa plataforma? Você tem alguma recomendação ou dica para as autoras que também publicam no Medium?

O que me motivou a vir pro Medium foi a minha mãe. Antigamente, postava todos os meus textos (a maior parte sobre relacionamentos e afeto) no meu blog, mas minha mãe gosta bastante do que escrevo e não deixava de ler um texto. Quando escrevi o primeiro conto erótico que não era horrível e quis colocar isso em diálogo na internet, precisei encontrar outro espaço.

O Medium me pareceu perfeito por alcançar muito mais gente, porque ele tinha capacidade de se auto divulgar de um jeito muito mais prático que um blog. O encontro com pessoas de vários lugares do Brasil foi fundamental pra mim, pra sair da bolha de amigos. Por isso, meu conselho é sempre esse: procure as publicações que te interessam e tente participar! Faça contatos, use o espaço para experimentar, tente criar seu lugarzinho de divulgação, mas não deixe de pensar em outros espaços de publicação.

Você tem objetivos específicos em relação ao seu trabalho como escritora?

Eu tento não pensar muito sobre isso, sabe? Vou usar o signo como justificativa: sou geminiana e mudo muito de ideia. Às vezes tenho clara consciência da importância política de escrever sobre sexo como feminista heterossexual (Foucault diz que o sexo sobre o qual não se fala é o do casal heterossexual), mas esse é o tipo de coisa que faz a perna tremer, então fico repetindo como mantra “só quero escrever um livrinho e pronto”. Gosto de me enganar assim.

Como foi o processo de escrever o Ao vivo em Goiânia — quatro contos de patroa? O que te inspirou para criar essas histórias?

Já tive bons momentos obcecada com Maiara e Maraísa e com músicas de outras cantoras do feminejo. Era a minha trilha sonora de ida e retorno do trabalho, que já até tinha motivado um conto com a personagem Vanessa. Mas Ao vivo em Goiânia foi uma ideia que surgiu só esse ano, na estrada, quando eu voltava do retiro de escrita que participei a convite da editora e escritora Sofia Soter. Estava frustrada com o meu texto, naquela fase de ler e achar tudo ruim, mas sem vontade de parar de escrever. Começou a tocar Show Completo no fone de ouvido, estava cantando junto mentalmente, quando veio o pensamento: essa música é melhor que muito conto erótico. Depois disso, passei o resto da viagem tentando criar histórias pras letras, inclusive pras que não faziam nenhuma referência a sexo, e decidi que tinha que fazer isso.

As histórias estão sendo escritas desde abril. A mais simples foi a da música Quando o meu é bom porque ela já tinha uma história e um final (feliz), o meu desafio era conseguir pensar na aflição da personagem esperando a resposta, além de conseguir fazer “o gosto do mel, o cheiro da rosa” fazer sentido no meu estilo de escrita. Nas histórias baseadas em Show Completo e Como faz com ela, que são mais conhecidas e foram votadas no Twitter, queria surpreender o leitor, então, tentei interpretar os versos com diferentes olhares. Já a ideia para Loka surgiu num encontro da Mulheres que escrevem, quando uma palestrante mencionou essa vergonha de nos olharmos no espelho. Quando comecei a escrever o conto, ficava imaginando que a buceta tinha a voz da Anitta, então, foi bem divertido.

Existe uma motivação específica para escolher escrever um livro de contos?

Gosto do conto, sobretudo, por me parecer pouco pretensioso. Como ele já avisa que é uma história curta com poucos personagens, que tem começo e fim, nos dá a impressão de que pode ser só uma experiência casual tanto para quem escreve quanto pra quem lê. Esse foi o motivo de escolher os contos, mas, cada vez mais, venho me inquietando na busca do que o conto tem de potencial em relação ao romance. É algo que estou me propondo a estudar só agora.

Por que você escolheu se autopublicar na plataforma da Amazon? Como foi essa experiência?

Conhecia a experiência da Taís Bravo, que publicou um romance por lá, sabia do sucesso que eróticos faziam no formato e-book e descobri outros autores independentes que estavam optando pela autopublicação de projetos curtos na Amazon. Então, achei que seria perfeito para o projeto com feminejo, que tinha a intenção de ser só uma pausa na escrita do meu projeto maior.

Tava interessada em fazer algo diferente com esses contos, porque sentia necessidade de sair um pouco do Medium e de começar a entrar mesmo na cena da publicação independente. Admiro muito quem quer fazer e faz, quem não espera por uma legitimação de fora antes de decidir publicar. Desde o início do ano tenho conversado com amigos sobre projetos de zines e revistas, queremos dar a cara a tapa e o livro digital foi pensado também como um termômetro da recepção desses textos. A experiência está sendo muito gostosa, recebi muito mais feedback do que recebia publicando os textos gratuitamente. Estou cheia de inquietações que quero transformar em histórias.

Quem são suas influências literárias? O que na sua opinião uma escritora iniciante precisa ler?

Essa é sempre uma pergunta difícil para mim, pois posso citar os autores que amo e admiro, mas não sei se consegui pegar qualquer coisa deles. Tem autor que me paralisa, porque me dá a impressão de que nunca vou chegar ali, tem autor que me diz “você também pode”. Se me perguntassem, em 2014, se escreveria algo erótico, diria que não, porque ainda estava completamente impactada por Bataille e Phillip Roth. Só comecei a arriscar depois que desapeguei dessas referências e pensei: “bom, acho que gosto mais da minha escrita quando estou mais pra Meg Cabot e Daniel Handler”. Acredito que esses dois autores de YA reverberam na minha escrita até hoje. Por isso, diria que uma escritora iniciante deve ler o que quiser, mas recomendo muitíssimo o Diário da Princesa e Desventuras em Série.

Como foi sua formação enquanto escritora? Você já fez alguma atividade como cursos, oficinas ou residências criativas voltadas para literatura? Quais? Qual foi o impacto dessas atividades em seu trabalho?

Gosto bastante de cursos e oficinas, fiz o que encontrei e pude conciliar com meu tempo. Em 2013, participei de duas edições de um projeto do Sesc SP que se chamava Leituras e adorei a experiência. No primeiro, tivemos a experiência de escrever e receber as críticas do autor que comandava, nesse caso, do João Silvério Trevisan. Claro que ele me puxou a orelha e, talvez, esse seja o melhor fruto de participar dessas experiências: encontrar alguém para te fazer uma crítica dura que pode ajudar.

Tenho vontade de fazer outros, mas, por enquanto, estou tentando aplicar o que aprendi com o Murakami, no livro Do que eu falo quando falo de corrida, bem como o que vou captando em palestras de escritoras.

O que você considera essencial para escrever? Existe alguma condição (seja com relação a local, materiais ou questões subjetivas), para que você realize seu ofício? Você tem uma rotina específica para escrever? Se sim, conte um pouco sobre ela. Se não, conte sobre o tempo que você dedica a essa atividade.

Eu sou do tipo que precisa ter uma ideia para começar, qualquer coisa, pode ser uma palavra que quero usar, pode ser uma frase inteira, pode ser um tema. Meu caderno tá cheio de frases como “não é só meter” ou “sexo menstruada” pr’eu lembrar de desenvolver. Sou uma pessoa metódica com muita coisa, mas não consigo ser com a escrita. Por mais que anote a linha narrativa que quero, se tenho uma ideia melhor, desapego daquilo. Por isso, o celular sempre me salva. Escrevia tudo no Evernote, mas, atualmente, tenho preferido o Google docs, porque é mais simples de compartilhar e nunca me deu problema com atualização. Também é ótimo ter a possibilidade de escrever em qualquer lugar, a gente que se divide entre os trabalhos que dão dinheiro e os gratuitos, sabemos que não sobra muito tempo pra chegar em casa e sentar. Eu escrevo muito deitada e em deslocamentos. Como moro em Niterói e minha família é do Maranhão, sempre pinta uma ideia durante o vôo, felizmente inventaram o modo avião.

A escrita pode até acontecer na base da anarquia, mas me acostumei a ficar relendo e editando um texto por pelo menos três dias (e isso eu faço sentadinha no computador). Quando não tenho nenhum prazo, fico retrabalhando um texto por quase uma semana. Aprendi a importância disso quando passei a contar com leitores “profissionais”, amigos que lêem os textos para questionar até a menores escolhas.

Foto: Yuri Goytacaz

Quais são os seus prazeres enquanto escritora?

Meu maior prazer no processo de escrita é escrever uma piada que acho muito boa ou encaixar uma referência bizarra, imaginando quem vai reparar e se identificar. Quando o texto está publicado, a maior felicidade do mundo é quando me dizem que começaram a ler e não conseguiram parar.

Qual pergunta você gostaria de responder?

Quando falo dos meus projetos de escrita, sempre digo que estou tentando escrever a mulher que queria encontrar na ficção erótica. Queria que alguém me perguntasse quem é essa mulher.

E qual seria a sua resposta para ela?

Eu não sei a resposta! E é isso que me faz continuar. Já pensei em parar com o erótico, escrever outras coisas, mas sempre que penso nessa mulher que quero ler, decido continuar. Antes achava que era só uma mudança de câmera, sabe? Por exemplo, em uma cena de boquete num pornô tradicional, vejo o olho lacrimejante da atriz, vejo a saliva, o pau aparece e desaparece, mas não vejo quem está sendo afetado por aquilo. No começo, queria ver esse outro porque ele ressignificava a mulher em cena: não é um pau sem corpo que se enfia na boca dela, é ela que se apodera dele. Ao mesmo tempo, queria estar dentro daquela mulher, mostrando o que ela gosta e o que ela tá ridicularizando mentalmente. O problema é que existem muitas teias, é muito difícil se libertar de um olhar do pornô que que sempre soa como um homem imaginando uma mulher.

Não queria escrever a mulher que topa qualquer ménage, também não queria reforçar a ideia de que gostamos menos de sexo. Em cada posicionamento parece haver uma armadilha. Por isso é difícil e necessário. Ando muito impactada pela Virginie Despentes e quero pensar a mulher que tem tesão por homens, mas que não vai brincar dessa sedução que é sobre batons vermelhos, voz baixa e vontade de agradar. Meu desafio é escrever a loucura que é uma mulher viril.

Para ouvir o podcast que gravamos com Seane Melo, clique aqui!

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