Foto por Mônica Imbuzeiro

Mulheres que escrevem entrevista: Conceição Evaristo

“O meu texto é um lugar onde as mulheres se sentem em casa”

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
13 min readNov 29, 2017

--

Quando soubemos que Conceição Evaristo estaria dividindo uma mesa com Edmilson Pereira na Blooks Livraria em Botafogo, logo nos prontificamos a fazer uma entrevista. Queríamos não apenas entrevistá-la, mas ouvi-la falar. Seus livros, que priorizam a linguagem oral, já nos davam uma dimensão do que seria trocar dois dedos de prosa com esta escritora fundamental para o nosso país. E foi muito mais do que isso. Foi ouvir e refletir sobre muitas coisas. Foi entender o processo de uma mulher que muito batalhou para ser reconhecida e lida e que, hoje, ocupa um espaço que é seu por direito.

Conceição Evaristo é mineira e nasceu em uma favela da zona sul de Belo Horizonte. É sempre lembrada por sua origem pobre e por todos os obstáculos que ultrapassou como mulher negra e periférica. Ao vir para o Rio de Janeiro, Conceição Evaristo se forma em Letras pela UFRJ. Posteriormente, se torna mestra em Literatura Brasileira pela PUC e doutora em Literatura Comparada pela UFF. Já escreveu diversos livros, indo de romances a poesia, de contos a textos teóricos. Seu romance Ponciá Vicêncio já foi publicado em inglês e francês e ganha cada vez mais espaço no meio literário pela importância dos temas que ele aborda.

Hoje, dia 29 de novembro, este mês marcado pelo Dia da Consciência Negra, Conceição Evaristo faz aniversário. É uma honra tê-la aqui, conosco, nesta entrevista que você poderá ler na íntegra agora.

Sei que você já deve estar cansada de responder a essa pergunta, mas como somos uma iniciativa que busca incentivar e criar um diálogo entre mulheres escritoras, gostaria de saber um pouco como foram os primeiros passos dessa sua caminhada na escrita? Com quantos anos você se deu conta de que escrever era algo que fazia parte de você?

Comecei a escrever muito cedo, menina. A escrita pra mim sempre foi um suporte para lidar com o mundo e, ao mesmo tempo, também colocar um questionamento para o mundo. Muitas das minhas perguntas de infância, de adolescência, foram respondidas ou aprofundadas através da escrita e da leitura. Todas as minhas questões da adolescência, aquelas dúvidas, eu só aguentei com a ajuda da escrita. Além das perguntas da adolescência, pelas quais todo mundo passa nessa fase da vida, também foi marcante o momento em que percebi as questões raciais. Eu como menina negra. O que havia de estranho nisso tudo, notar a questão racial, a pobreza em que a gente vivia. Naquele momento eu já sabia que queria alguma coisa, só não sabia o quê. Mas uma coisa eu tinha certeza: que aquela vida que eu tinha não podia ser eterna. Eu tinha a certeza que aquela vida não era justa. Eu não sabia se a escrita poderia ser um caminho para mim, mas a escrita já era uma necessidade. Já era um alento e ao mesmo tempo também um local de tormento, um lugar onde eu colocava todas as minhas dúvidas.

Você usa o termo “Escrevivências” que significaria uma escrita comprometida com a vida, com a vivência, defendendo que mesmo no processo de ficcionalização, uma escrita irá estar atravessada diretamente pela vivência de quem escreve. Como você acha que essa prática e essa forma de escrita podem ajudar na visibilidade das mulheres?

Eu digo que tudo que escrevo, seja de um ponto de vista crítico, como pesquisadora, ou de um ponto de vista da criação literária, é profundamente marcado pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. O que tenho percebido é o seguinte: essa “escrevivência” tem ajudado outras mulheres a se perceberem. Percebo cada vez mais que, na medida em que essas mulheres se encontram nos meus textos e encontram os meus textos, elas se apossam da vida com muito mais certeza. Acho que a minha escrita tem possibilitado que essas mulheres acreditem mais em si mesmas, que se reconheçam, que sabemos ser muito difícil. A literatura que nós conhecemos, essa literatura canônica, ela não nos representa e quando nos representa é sempre de uma maneira limitada, de uma maneira estereotipada. Então o meu texto é um lugar onde as mulheres se sentem em casa, se sentem reconhecidas de verdade.

Maria Valéria Rezende costuma dizer que mulher nenhuma consegue ter uma rotina de escritora. Você concorda com essa afirmação? Como foi para você escrever livros tão intensos como Ponciá Vicêncio?

Concordo plenamente. Hoje vejo que Ponciá Vicêncio foi escrito em um momento em que talvez eu estivesse tentar sublimar minha dor. Eu tinha acabado de ficar viúva. Hoje, fico pensando: “será por isso que em Ponciá Vicêncio a personagem sofre tantas perdas?”. Pensando nisso, “Becos da memória”, que foi um livro que demorou 20 anos para ser publicado, foi um livro que escrevi rápido, acho que levei menos de um ano para escrever. Ponciá Vicêncio também. Rápido assim, na hora que me era possível escrever, já que nessa época tinha uma filha pequena. “Insubmissas lágrimas de mulheres” levei mais de um ano, parei por causa da tese e retomei depois que terminei.

O que você consideraria essencial para escrever? Existe alguma condição (seja com relação a local, materiais ou questões subjetivas), para que você realize seu ofício? Você tem uma rotina específica para escrever? Se sim, conte um pouco sobre ela. Se não, conte sobre o tempo que você dedica a essa atividade.

Eu não tenho uma rotina de escritora. Hoje, menos ainda, pelo fato de estar sempre em debates, palestras, encontros… E além de ser escritora, sou uma dona de casa. Eu cuido da minha casa, só tenho ajuda quando vou viajar e preciso deixar uma companhia para a minha filha. Fora isso, a rotina de casa é minha. Hoje estou aposentada, mas sempre trabalhei, estudei, dava aula, ia pros tratamentos da minha filha, lutando pela sobrevivência… Então não tenho uma rotina de escritora. Aliás, esse é um sonho que tenho.

Você teria alguma dica para dar às escritoras que estão começando? Principalmente para escritoras negras?

Sim. Acho que temos a necessidade de ler os nossos textos. Até porque a nossa formação não é essa. Por exemplo, conheci Carolina Maria de Jesus fora da academia. Já Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, conheci na academia. Hoje já há uma outra movimentação, há pesquisadores acadêmicos que estão trabalhando com textos de autoria negra. Mas mesmo assim, nossos textos ainda não chegam com tanta veemência. Aliás, os textos de mulheres em geral não chegam e os de autoria negra muito menos. Então temos que procurar nos ler, conhecer mesmo os textos umas das outras. Se vale à pena ler Clarice Lispector, vale à pena ler Carolina Maria de Jesus. E não só os textos literários, como também os teóricos, para começarmos a pensar uma crítica a partir do nosso lugar cultural.

Em 2014, a jornalista Joanna Walsh trouxe à tona um movimento que fomentava aumentar a leitura de mulheres escritoras. Assim surgiu a hashtag Leia Mulheres. Costumamos também usar Leia Mulheres Vivas e Leia Mulheres Negras. Que mulheres vivas você gostaria de indicar para outras mulheres?

Geni Guimarães tem um livro belíssimo chamado “A cor da ternura”, mas se tiverem a oportunidade leiam a primeira versão, que é “Leite do peito”. Também indico a Lívia Natália, amo os poemas dela. Elizandra de Souza também. Gosto muito de Cidinha da Silva como cronista. Miriam Alves, Lia Vieira, Ana Cruz… São muitas. E vão de prosa a poesia e crônica. Não dá para dizer que não tem gente produzindo.

Foto por Zanone Fraissat

O apagamento de escritoras mulheres, principalmente de mulheres negras, é constante no meio literário. Que outras mulheres negras apagadas da história você gostaria de trazer à tona para que outras pessoas conhecessem?

A própria Maria Firmina dos Reis. Como poetisa também a Auta de Souza. Proponho também uma releitura de Xica da Silva, para além dos parâmetros da sexualidade que é atrelada a ela. Tem um livro muito interessante sobre isso: “Xica da Silva e o Contratador de Diamantes — O Outro Lado do Mito”, da Júnia Ferreira Furtado, em que ela pensa a Xica da Silva sob um outro prisma. Também compondo uma outra história de Xica Silva, o livro de Lia Vieira “Xica da Silva: a mulher que inventou o mar”. Também sugiro ler sobre Beatriz Nascimento: “Eu sou atlântica”. Recentemente saiu um livro de poemas dela, mas ela era historiadora e foi uma das primeiras mulheres a pesquisar sobre quilombos. Temos a Lélia González também, que foi uma grande pensadora negra. Sueli Carneiro, que está viva, é nossa contemporânea. Ela merece um destaque melhor. Talvez se fosse uma pensadora branca, hoje ela estaria ocupando outro lugar.

Como foi para você ter sido tema da Ocupação do Itaú Cultural de São Paulo? Estar neste lugar sendo homenageada e reunindo tantas mulheres, em uma cidade como São Paulo, deve ter sido um momento único.

Foi muito bonita e digna a exposição. A artista plástica que concebeu essa ideia foi de uma sensibilidade muito grande. Nós conversamos muito e uma coisa que pedi foi que ela não pautasse a exposição apenas pela minha origem. Eu não tenho nenhum problema de resgatá-la. Todas as minhas biografias e textos que escrevem sobre mim dizem que nasci e cresci em uma favela e não tenho nenhuma dificuldade com relação a isso. Pelo contrário, em determinadas circunstâncias isso toma uma forma de me afirmar. Mas o que pedi para ela é que não fosse uma exposição que fizesse uma apologia à pobreza. E ela teve muita sensibilidade de conceber uma exposição com o meu gosto e que não acentuasse essa história. Foi muito bonito. Ao entrar na exposição, logo no início havia um retrato de Anastácia, a mãe do povo negro. E Anastácia traz aquela máscara impedindo a fala. Eu gosto muito dessa imagem porque tenho dito que há povos que conseguem falar pelos orifícios da máscara. E falam com tanta veemência que são capazes de estilhaçar a máscara.

Uso dois exemplos disso: um é a Carolina Maria de Jesus, que foi “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas. No entanto, a voz de Carolina é que descobre Audálio Dantas dentro da favela. Ela vê o jornalista e provoca uma discussão dizendo “vou pôr o teu nome no meu livro”. Para chamar a atenção dele. Penso também no livro da Spivak: “Pode o subalterno falar?”. Mesmo se a fala do subalterno for atravessada pelo poder, o poder fica com a sua pretensão e a fala do subalterno ressoa. Hoje você pode ouvir falar de Carolina e não de Audálio Dantas. Qual voz ficou? A de Carolina.

Tem uma manchete do jornal que até diz que essa exposição ocorreu no maior centro comercial do Brasil, ali na Avenida Paulista. Pra mim essa exposição foi o exemplo disso, da força da nossa voz. E também falei como foi bom ter a oportunidade de ter sido homenageada viva.

Houve um momento na Flip em que eu caminhava pelas ruas, cuidando de não cair entre as pedras, e me deparei com você, parada, olhando para a Igreja do Rosário. Como foi para você estar nessa Flip, fechando mesas em Paraty, um lugar atravessado por tantas histórias relacionadas ao povo negro, ocupando esse espaço?

Olha, tenho dito às vezes que a literatura pode ter um sabor de vingança. E digo vingança pelo silêncio que nos foi imposto. Aí volto outra vez à máscara de Anastácia. Um silêncio que nos foi imposto e foi rompido daquela forma. Para mim, simbolizou muito isso. Esses momentos que nós temos vivido na autoria negra não são momentos que nos foram concedidos, são momentos conquistados. Nós nos apossamos desse território com toda a certeza de que é uma posse de direito, justa e, digo mais, tardia. Então estar ali, na Flip, significou estar com a Ana Maria Gonçalves, o que foi muito bonito. Um auditório em que havia uma grande presença de pessoas negras, fora, na praça, também éramos maioria. E foi uma Flip que nunca havia acontecido. Acho que ficou explícito que nós, negros, lemos. O povo negro só precisa ter oportunidade. Nós gostamos de samba, de dança, de comida, de leitura, de fazer amor, com homens e com mulheres. É perceber que todas as outras possibilidades que são da competência dos brancos também são da nossa como negros. Eu acho que a Flip também nos colocou nesse lugar da cultura que não é simbolizado só pelo samba, pelo canto, pela dança, mas é simbolizado já num campo letrado, que foi sempre dos homens brancos e depois das mulheres brancas. E agora é nosso.

E como você se sentiu na Casa Malê?

Eu experimentei uma sensação muito boa ao ver um público bem jovem. Estou com 70 anos, então a maioria ali poderia ser meus filhos e netos. E outra sensação que também experimentei foi essa possibilidade que nossos textos também têm de abrigar pessoas não negras. Há muito tempo eu li algo de um pensador africano que dizia que o negro ensinou ao branco o que é a humanidade. Porque a humanidade, a universalidade, que muitas vezes o sujeito branco prega, não nos contempla. E a universalidade que nós vivemos contempla todo mundo.

Um momento bastante emocionante também foi na ocupação em São Paulo. Eu estava dando uma entrevista e veio uma senhora branca falar comigo. Ela disse: “Me desculpa, eu sei que você está dando uma entrevista, mas eu preciso dizer isso pra você agora. O seu texto me emociona profundamente”. Aí eu até deixei a entrevista e comecei a conversar com ela. Era uma mulher branca, pediatra, nem era da área de literatura. E eu tenho encontrado também muitas pessoas brancas que se encontram e se sensibilizam com o meu texto. Acho que nesse sentido a gente poderia pensar em uma literatura universal. Uma literatura em que a humanidade do outro é tocada, em que a humanidade do outro cabe.

Casa Malê na Flip

Temos visto, cada vez mais, movimentos de saraus, leituras de poemas, movimentos como o Slam das Minas, surgindo no cenário da literatura contemporânea. Estive no Sarau da Malê, na Flip, e foi uma experiência única. Você acredita que voltar a experimentações no campo da oralidade pode abrir mais espaços para escritores de fora do círculo restrito do cânone?

Eu acho que dá mais oportunidade para as pessoas que estão fora do cânone sim. O cânone é algo fixo, parado. Acho que quebrar as regras do cânone é muito difícil. Você pode encontrar um pesquisador ou outro que faça isso. As pessoas dizem às vezes que já sou canônica e eu não sei nem se quero ser canônica. Não sei se quero pertencer a esse cânone que está aí. Agora, acho que isso nos dá mais oportunidade de impor nossas vozes. De impor a voz da oralidade, que é intensa. Acho que o dinamismo da forma oral, que é corpo e fala, é muito contagiante. E acho que nos dias de hoje, além de ser contagiante, ela é necessária. Até em função da rapidez com que a gente vive. Se você abre um livro agora para ler, você tem que ter um tempo de leitura. A fala não, se você escuta um texto, ele te contamina na hora.

Eu já vi, por exemplo, um professor fazendo trabalho com rap, em um texto que dialogava com Carlos Drummond de Andrade. Acho que esses textos oferecem essa possibilidade pra quem tem o olhar aberto para a diversidade.

E agora nosso momento favorito. Gostaríamos de abrir esse espaço para te perguntar: Que pergunta você gostaria de responder?

Ah, gostaria que me perguntassem sobre o meu processo de criação. Porque tenho um certo receio que as pessoas se encantem por essa figura aqui: uma mulher negra, que veio da favela e que escreve. Me anunciar dessa forma, até pelo fato de eu ser uma mulher negra que estou escrevendo, me torna um objeto vendável. Porque desperta curiosidade. E eu tenho muito receio de que as pessoas fiquem só no meu histórico pessoal e não leiam o meu texto. Eu quero que leiam.

E qual seria a sua resposta para ela?

Gosto muito de dizer o que me motiva escrever. Podem ser várias coisas: uma música que ouço, uma dança que vejo, uma conversa numa mesa de bar, um fato que me contam… Eu tenho dito que escritor ou escritora é sempre fofoqueiro. Às vezes as pessoas estão conversando comigo e no meio da conversa já começo a criar um texto. Ou pergunto se já escreveram sobre o que estão contando. Acho que são relatos que tem que ser escritos. Como pode existir uma história desperdiçada? Várias situações me despertam esse desejo de escrita. Agora mesmo eu estava em casa tomando banho e me veio o título de um livro e pensei em escrevê-lo.

Quero aproximar o meu texto o máximo possível da linguagem oral. Em Ponciá Vicêncio, há um momento que diz que só o pai não ficava impressionado com a semelhança da menina com o avô. E aí eu pensei: semelhança é um termo que todo mundo usa, então vou botar parecença. Uso muito o dicionário. Gosto de trabalhar com palavras consideradas raras, mas que são usadas no dia a dia do interior ou por pessoas mais velhas. Quando termino um texto, gosto de ler em voz, escutar o texto.

Trabalho muito os nomes de personagem também. Porque acho que uma pessoa começa a ler um livro a partir da capa e do título. E o personagem a partir do nome. Também gosto de criar nomes que me lembrem nomes africanos, não precisam ser necessariamente africanos, mas que tenham uma sonoridade africana. Porque também gosto de levar pro meu texto uma estética que lembre a própria oralidade africana.

O último ou penúltimo parágrafo de Ponciá Vicêncio é um texto metaliterário. Não encontrei ainda nenhum leitor ou pesquisador que perceba que fiz um texto metaliterário. E fiz conscientemente. E que dá justamente esse entendimento do que eu quero dizer com escrevivência.

Esta entrevista foi concedida por Conceição Evaristo exclusivamente para a iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter

--

--