Mulheres que Escrevem entrevista: Janaina Abílio

Gosto da palavra, de enfiar os dedos, brincar de massinha com ela.

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
10 min readSep 9, 2020

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A Mulheres que Escrevem entrevistou Janaina Abílio que lançou seu primeiro livro de poemas ‘e fica um gosto de cica na boca’ pela Garupa Edições em 2019. Janaina Abílio nasceu em 88, no Rio de Janeiro. Cursa Português e Literaturas na Unirio, já publicou pelo Bando Editorial Favelofágico, na antologia de contos “Grãos Imastigáveis”, e nas revistas Vacatussa e Garupa.

MULHERES QUE ESCREVEM: Como foi seu primeiro contato com a escrita? Como você começou a escrever?

JANAINA ABÍLIO: Eu aprendi a ler e escrever sozinha, com uns 4 anos. Meus pais me deram um quadro negro de presente e foi ali que eu comecei. Lembro que tinha uma ânsia de entender logo as palavras, ficava perguntando pra minha mãe toda hora.

Sempre quis escrever, era uma ideia na cabeça, mas não escrevia ou escrevia quase nada. Não tive muito essa história de diário, de escrever cartinha e tal. Lembro que meu pai até tentou me animar a manter um diário, dizia que era assim que escritores começavam, mas eu sempre largava. Rolava uns escritos do tipo, mas bem esparsos.

Eu lia muito quando criança, isso lembro bem, a biblioteca era um dos meus lugares favoritos. Mas acho que tentar escrever com uma intenção, foi já adolescente. Eu devia ter uns 13, 14 anos. Lembro que realmente sentei pra escrever, uma coisa bem decidida. A história que eu tinha em mente era sobre duas meninas que se apaixonavam e viviam um romance proibido no século XVIII, algo assim. Cara, eu lembro disso hoje e é tipo um jogo dos 7 erros, né? As personagens eram brancas, claro, uma coisa meio Malhação com novela das 6, e eu não passei de uma página.

As minhas referências todas eram muito brancas. Então acho que eu também não conseguia pensar em histórias em que eu participasse, que de fato fossem minhas. Isso tem tudo a ver com esse lance de querer escrever e não conseguir.

Fui fazer Jornalismo aos 17 também porque queria escrever, mas só fui começar a pegar o pique de escrever mesmo lá pros 20. Foi meio quando destravei. Tava desempregada na época, morando num quartinho em Santa Teresa. Só tinha um computador velho que me deram, não tinha internet, era só paciência e word. Ficava a tarde inteira lendo Fernanda Young na biblioteca do CCBB, até que um dia, na volta, pá, comecei a digitar umas coisas. Mas daí até chegar na Carolina Maria de Jesus por exemplo… foi um rolê.

MQE: Em que momento você entendeu que queria ser escritora? Quais foram as referências que fizeram você considerar a escrita como um ofício?

JA: Então, era isso. Eu queria ser escritora, mas não escrevia. (Ou eu só tinha uma imagem muito idealizada do que seria uma escritora, essa coisa de escrever compulsivamente e tal, e não era o que rolava) Eu só sabia — e passei muito tempo assim. Fazia uns textões no Facebook, tinha um blog fantasma que ninguém conhecia, até publiquei uma vez no Blogueiras Negras, mas não passava disso. Acho que comecei a levar mais a sério quando conheci outras pessoas que escreviam, isso foi mais ou menos em 2015.

As pessoas começaram a ter umas reações muito fortes rs. Eu sabia que escrevia bem, mas realmente não esperava pelas reações. Pra mim era tipo normal. Ah, um negocinho aqui que eu escrevi, é bom, mas é só um negocinho. Então precisei que outras pessoas confirmassem pra mim “Janaina, você é escritora sim”, pra daí realmente aceitar aquilo que na verdade eu já sabia. A Renata Correa acho que foi a primeira a dizer isso pra mim. Eu era extremamente autocrítica, então o que as pessoas achavam incrível eu só achava tipo legal. Depois veio a experiência do Bando Editorial Favelofágico, uma residência literária em Manguinhos, e daí eu fui entendendo que tinha algo mesmo. Mas, pra tu vê, nem faz muito tempo.

E sim, a coisa só desandou quando comecei a escrever de fato as minhas histórias. Então muitas questões sobre pertencimento, identidade (eram os assuntos preferidos dos meus textos) e um processo mesmo de reivindicar esse lugar de autoria, uma busca/construção do que é ser uma mulher afrodiaspórica que escreve (que é contínuo).

MQE: Você pode contar um pouco como é seu processo de escrita? Pra você, qual é a diferença entre escrever e publicar?

JA: Mulher, eu não sei não hahaha. É bonito isso de “processo de escrita”, mas na real, não sei qual é o processo. Tem o ir fazendo. E aí de repente teve lá um processo que aconteceu e que fica sem ser mapeado mesmo.

Eu acho uma beleza quando vejo alguém falar que tem método, que tem horário, que tem ritual. Eu ainda passei por períodos sem escrever absolutamente nada mesmo depois de já ter aceitado ser escritora. E me cobrava muuuuito por isso, me sentia uma farsa, porque era escritora e não escrevia. Foram períodos de grandes desafios emocionais, então escrever pra mim é algo que requer uma certa sanidade.

Diria que o processo é me cuidar, estar viva e ter algo em que possa anotar por perto.

Mais recentemente, peguei gosto por escrever a mão também. Mas o “cica” começou basicamente no celular.

O barato de escrever veio falando de mim mesma, falando aquilo que em tese ninguém daria ouvidos, e de repente pegar isso e inventar em cima. O passe livre da mentira. Porque é raro eu contar uma mentira assim na vida, então escrever é o meu momento.

Tem o barato do texto em si também. Um autodesafio de ser sempre mais simples, mais fácil, mais diferente. Gosto da palavra, de enfiar os dedos, brincar de massinha com ela.

MQE: E como foi o processo de publicação do seu primeiro livro, “E fica um gosto de cica na boca”? Quando você sentiu que o livro estava pronto? Como escolheu sua editora? Qual foi a influência do trabalho de edição sobre o livro?

JA: Em 2017, comecei a faculdade de Letras. E se eu já não tava escrevendo muito, com a faculdade, os planos de escrever um romance me pareceram muito distantes rs. Eu trabalhava e estudava então é aquilo que a Audre Lorde fala sobre a poesia ser a arte mais econômica, que requer menos tempo e materiais. Pois bem, passei a anotar no celular as ideias que vinham aleatoriamente e pá, começou a rolar algo que pareciam poemas. Eu não sabia muito de poesia para além do Drummond — nisso vocês aqui também ajudaram :). Então comecei a descobrir poetas, a procurar o que tava rolando.

Lembro que fui fazer uma oficina com a Lubi Prates, tinha lido uns poemas dela e curtido muito. Lá, o Thadeu Santos da kza1, que tava promovendo a oficina junto com a Lubi, perguntou se eu tinha mais coisas, ele tava fazendo umas plaquetes (ou zines, nunca sei a diferença) na época. Falei “blz, vou mandar”. Daí enrolei meses, porque na minha cabeça eu não tinha nada, tava blefando. Em um dia catei tudo que tava no Evernote, dei uma organizada e mandei. Mas aí depois que eu enrolei, ele também enrolou rs, foi fazer outras coisas, sei lá. Achei que nem ia rolar mais nada, já tinha esquecido do assunto, e de repente ele chegou com a Ju Travassos da Garupa falando que eles tavam lançando uma coleção e me convidaram. Então a zine virou livro.

Não foi exatamente um processo estruturado, tá vendo? hahaha.

Eu nunca achei que o livro tava pronto. Acho que esse foi o papel mais importante da edição: “Janaina, tá ok, vamo publicar”. Não houve grande intervenção nos poemas, rolou o trabalho de selecionar, ordenar. E dizer “Janaina, tá ótimo, chega”.

MQE: E como está sendo a recepção do livro?

JA: Quando finalmente chegou a hora de publicar, eu fiquei muito preocupada pelo livro ser meio pesado. Entrei nesse julgamento por um bom tempo. Eu finalmente tinha encontrado uma leveza, 2018/2019 foi mesmo muito transformador pra mim, então parecia que aquilo não era mais eu. Tinha um desejo já de compartilhar outras coisas. E de fato as pessoas falam que é pesado.

Mas, é engraçado, a recepção me parece muito leve. A maneira como as pessoas digerem o livro e fazem uso dele me parece leve. Fico feliz de ver outras poetas compartilhando, mas fico feliz demais também de ver a reação da vizinha da minha mãe, por exemplo, que saia com ele debaixo do braço pra trabalhar. Me divirto vendo o livro andar sozinho.

Teve poema, como o “receita para não se matar” que eu não imaginava que as pessoas fossem sentir tanto. Esse foi o que mais me surpreendeu. Eu escrevi a lista pra mim, numa época em que ainda tinha algumas crises e nem sempre sabia o que fazer. Então comecei uma lista pra deixar na minha cabeceira. Foi realmente uma surpresa ver como as pessoas se conectaram. Mas me parece que isso tem sido um movimento num geral, de buscar uma poesia além da revolta, além do esporro. Nunca se falou tanto em saúde mental (que pra mim vai muito além do mental). Estamos todos criando, de uma forma ou de outra, nossas receitas.

MQE: Em um dos poemas do livro, você diz que quer ser “nanopoeta”. Pra você, o que é essa poesia pequena? Qual é o lugar dessa poesia?

JA: Estou aqui sendo poeta porque faço poesia, mas não me vejo muito num ideal de poeta e nem me interessa. Viver me interessa mais. Entrar e sair por todos os buracos parece mais divertido do que ficar entalada num buraco só, enorme. A poesia pequena pode ser a poesia que a minha mãe faz quando cozinha, não sei. Tem um texto da Alice Walker “Em busca dos jardins de nossas mães” que fala isso. Ela percebe que a mãe dela fazia arte cuidando do jardim. Acho que cuidar de um jardim me interessa mais do que um posto de poeta. Não é sobre alcance, o alcance em si pode ser enorme. Poesia pequena pode ser uma poesia que não é presunçosa, que não perde de vista aquilo que é essencial, a magia, a conexão, o contato.

MQE: Em uma live com a poeta Natasha Felix, você comentou que o poema “antiepopeia” foi uma experiência de deixar a criança que você foi falar. Como foi o processo de deixar essa criança falar através da poesia?

JA: Eu não tinha consciência disso quando escrevi o “antiepopeia”. Tanto que me incomodava não conseguir um final glorioso pro poema ou a parte em que cito os escravizados que carregavam dejetos. Me incomodava porque politicamente não é o discurso que mais faz sentido pra mim, porque acredito na potência das narrativas para além da dor e do trauma.

Mas, em algum momento, entendi que era a minha criança falando. E se tem uma coisa que é poderosa, para todos nós, é deixar nossas crianças falarem. Seja num poema, seja numa terapia. E estar presente para ouvir, dar um abraço nela, “eu to aqui pra você agora, eu te vejo”. Ela precisava falar como foi doloroso estar naquela escola, naquele sistema, desenhar aquela violência.

Se a minha criança não tinha uma história de Nzinga, de Benguela ou tantas outras pra contar, é justamente porque ela não foi apresentada a isso. E então voltamos ao próprio poema. E o final glorioso sou eu hoje, viva.

MQE: Você estuda Letras na Unirio e também trabalha como terapeuta. Você acha que essas experiências participam da sua relação com a escrita? De que forma?

JA: Eu ainda estou descobrindo como participam. Como terapeuta e poeta, me interessa cada vez mais investigar maneiras de fazer poesia sem precisar chafurdar na dor. Essa ideia do artista como uma figura sempre angustiada, sofrida, cheia de vícios, essa ode à melancolia, é uma invenção tão branca, tão ocidental — porque assim é esse modo de viver que tão entubando na gente há séculos. Aí a gente volta no “nanopoeta”. Eu tinha comprado isso, pra mim só dava pra fazer arte me rasgando inteira. Chega, né?

Eu descendo de um povo solar, que constrói narrativas em comunidade. Isso que a gente chama de literatura também é uma invenção colonial. Mas é aquilo, não dá pra negar todos os anos que passei enfurnada nas bibliotecas ou mesmo a faculdade. Então é inventar uma outra coisa, que eu ainda não sei o que é.

Porque o genocídio não é só físico, é psíquico, é espiritual sobretudo. Ser feliz é político, o espiritual é político. Meu envolvimento com as terapias holísticas começou em 2018, logo depois do assassinato da Marielle. Ali eu falei pra mim mesma “não posso mais querer morrer, chega”. Eu já não queria na verdade, mas ainda não vislumbrava uma nova maneira de viver.

Eu só aceitei de vez o “cica”, quando recebi a mensagem de uma menina dizendo que o “receita” tinha ajudado ela a levantar de manhã. Pra mim valeu ali. Aquilo me bateu tão forte, ainda me emociona hoje.

Se a poesia cura, eu não posso garantir. Mas pra mim hoje toda cura é possível, essa é a minha premissa como terapeuta. Antes escrevia em total desesperança. Hoje gosto de escrever tendo em vista o infinito.

Esta entrevista foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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