Mulheres que Escrevem entrevista Jarid Arraes
"Eu quero que a gente olhe para essa feiura. Isso é sobre nós"
Aos 27 anos, Jarid Arraes é uma das vozes mais fortes da literatura nacional contemporânea. A autora de "As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras” conversou com Taís Bravo, coordenadora de projetos da Mulheres que Escrevem, sobre seu novo livro de poesias "Um buraco com meu nome". Aproveitamos para convidar a todas/os para o lançamento de "Um buraco com meu nome" no dia 18 de agosto em São Paulo.
TB: Jarid, o que significa para você lançar um livro de poesias em 2018?
JA: Para mim, lançar um livro de poesias, em 2018, é um ato de liberdade. E é um ato político.
Eu sempre escrevi e publiquei fazendo tudo de caso pensado, e sempre falei sobre isso. Com “Um buraco com meu nome” não é diferente, sabe? Eu tenho orgulho de tudo o que fiz até aqui, porque acredito na relevância literária e política de “As Lendas de Dandara”, do “Heroínas Negras Brasileiras” e de cada um dos meus cordéis, mas também acredito que fazer algo diferente de tudo isso é um ato de divergência tão grande que é inegável minha prática de liberdade e de questionamento ao lugar que me foi estabelecido.
Porque é muito mais esperado que me coloquem para sempre no lugar “do outro”, ou seja, no lugar da “literatura afrobrasileira”, que implica em uma estética “do outro”, em um tema “do outro”, e por isso pode ter o seu lugar de nicho, que pode não ser o lugar de igualdade — isso pode depender do contexto, mas até agora só experimentei uma oportunidade em que fui tratada de igual para igual fora dos espaços entre pessoas negras. Com o “Um buraco com meu nome”, eu saio desse nicho. Há várias poesias no livro que abordam o racismo, a identidade racial, mas eu faço isso a partir de outra proposta. Talvez eu esteja tentando um lugar fora do nicho. E tenho percebido que isso é muito mais difícil. Eu estou tentando entender o racismo, tentando entender se isso será “literatura afrobrasileira”, se isso será poesia como qualquer outra poesia, o que será. Se é que vai ser, se é que vou existir. Estou, de novo, tentando existir.
TB: Conta para gente sobre o que é “Um buraco com meu nome”? Como esse livro participa do seu projeto de escrita? No que ele se assemelha e também se diferencia dos seus outros livros?
JA: “Um buraco com meu nome” é sobre tudo o que há de feio. Na sociedade, em nós, nos outros. O que há de feio demais, aquele feio que a gente muitas vezes não consegue olhar.
Por isso, ele se assemelha a tudo que eu fiz antes. Claro que eu fiz isso antes de forma muito mais leve. Eu falei de racismo, de machismo, de tráfico humano, de tortura. “As Lendas de Dandara” fala de tudo isso, mas eu não descrevo em detalhes, coloco ilustrações coloridas, é um livro para todas as idades. Com o “Heroínas Negras Brasileiras” fica evidente a tentativa de silenciamento das mulheres negras, a violência simbólica e material, o estupro, a tortura. E uso todas as palavras para falar sobre isso, mas ainda assim o cordel traz leveza e há um viés claramente didático.
“Um buraco com nome” não tem o objetivo de ser didático, embora possa ser. Ele não tem cuidado. Como disse uma leitora que o comprou na pré-venda e já terminou a leitura: não é um livro que eu escrevi para que a gente se sinta bem. Eu quero que a gente olhe para essa feiura. Vamos olhar, vamos sentir. Isso é sobre nós. E há um caminho para ser caminhado.
TB: Esse é um livro de poesias que tem um tema e, de certa forma, narra uma história. Como surgiu essa história? Quando você começou a escrever esse livro? Esses poemas foram escritos durante um mesmo período ou em diferentes fases da sua vida?
JA: Todas as poesias foram escritas no mesmo período, em meses seguidos, a partir de maio de 2017. Quando comecei não queria exatamente contar uma história, mas queria que o livro tivesse um tema, porque gosto ainda mais de livros de poesia que são coesos, que claramente possuem um tema.
Mas daí, à medida que os meses iam passando e eu escrevia essas poesias, fui percebendo que os temas caminhavam para um “fechamento” e a história ficou evidente para mim. Que é a história de um animal buscando um buraco com seu nome. Nós começamos com tudo o que transformou esse animal em uma fera, encaramos seu corpo aberto, mas depois assistimos seu encontro com um abrigo, que está em outros e também em si mesmo.
Eu gosto de contar essa história, não considero um “spoiler” nem nada do tipo, porque penso que cada um vai sentir os poemas de forma diferente. Já vi várias interpretações distintas para o primeiro poema do livro, então vai saber, né? Confio nessas possibilidades.
TB: Em “Um buraco com meu nome”, há muitos poemas que tocam em assuntos como depressão e ansiedade. Na nossa sociedade, saúde mental é muitas vezes tratada como uma questão meramente individual e subjetiva, mas, em sua escrita, esse é um tema também político. E penso que também é político quando uma mulher negra escreve sobre esse assunto. Para você, por que é preciso escrever sobre temas como esses?
JA: Quando eu estava refletindo sobre quais temas eu gostaria de colocar em “Um buraco com meu nome”, pensando na importância política de cada um, a saúde mental foi um dos primeiros que apareceu.
Nos últimos meses acompanhamos vários casos de suicídios. De pessoas conhecidas, de escritores, de estudantes em universidades. E eu vejo que muitas pessoas não sabem nada sobre suicídio. Acham que suicídio só parte da depressão, que a depressão é o único transtorno mental que pode facilitar o processo de alguém até o suicídio. E poucas pessoas pensam o suicídio por uma ótica existencial. E a saúde mental por uma ótica existencial. Há muito o que se pensar e aprender, muito o que se ouvir e sentir. Saúde mental é política, cara. Existe todo um movimento antimanicomial, todo um movimento que questiona os abusos e negligências da psiquiatria que distribui drogas psiquiátricas como balinhas de caramelo. Todo um questionamento a respeito da formação generalista de psicólogos. E falo sobre isso como alguém que cursou a faculdade de Psicologia, alguém que ama Psicologia e ama estudar saúde mental.
Então eu compreendo apaixonadamente a saúde mental como política. E eu não poderia deixar de escrever poemas sobre isso.
Tenho alguns artigos na internet em que entrevisto pessoas negras e falo sobre racismo que parte de psicólogos, por exemplo. Então tudo está ligado e é relevante.
TB: Nesse livro, também encontramos um eu-lírico que se expõe profundamente vulnerável. Essa vulnerabilidade, no entanto, é algo que muitas vezes é negado às mulheres negras que são constantemente representadas enquanto fortalezas, guerreiras dotadas de uma força incondicional. Expor a vulnerabilidade é um caminho de cura? É uma forma de se rebelar contra essa imposição de ser forte?
JA: Penso que sim. E penso que essa vulnerabilidade, essas questões existenciais, profundamente humanas, são as questões que em vários pontos nos aproximam. Digo isso porque por muito tempo eu só tive acesso a literatura com personagens brancos, com muitos homens brancos, como “O Senhor dos Anéis”, por exemplo. E eu encontrava num elfo — que, vamos concordar, tem zero a ver com minha realidade e aparência — a característica humana que nos unia. E com isso eu podia sentir suas crises, seu sofrimento. Me sentir próxima, me sentir refletida.
Para mulheres negras, o direito ao humano, ao existencial, ao corpo físico que sente dor, ao ser que sente dor, é um passo importante. É um processo curativo e que não só cura a si, mas que também abre espaço para que outras possam se permitir.
Mas acho também relevante dizer que, enquanto eu escrevia, eu não pensava em fazer isso enquanto rebelião contra o racismo, mas sim em mostrar esse corpo aberto, essas questões de saúde mental, como parte de tudo isso que está na história do livro. Por um lado, isso pode ser visto mais como consequência do racismo, já que no início do livro eu aprensento o racismo como algo que transformou o animal em fera com o corpo aberto, vulnerável, sofrendo. Pelo menos é isso que eu tinha em mente. Depois de publicado, é de cada um. Acho importante e lindo.
TB: O eu-lírico de “Um buraco com meu nome” se confronta com sua identidade. Isso se apresenta em muitos momentos, desde sua relação com seu tom de pele até memórias familiares. E esse é um tema muito caro para o nosso tempo histórico e político. Para você, o que está em jogo nessa busca, no seu caso através da escrita, pela encontro ou a afirmação de uma identidade?
JA: A identidade foi outro tema prioritário para mim e, nesse caso, especificamente dentro do aspecto racial, o que é pessoal. Esse conflito com a identidade racial fez e faz parte da minha história de maneira muito profunda e muito dolorida. É difícil a confusão que te causa não ter um lugar, ou desejar ter outro lugar diferente do que parece ser o seu. Ou ter um lugar e de repente achar que não é mais seu lugar.
Falo muito sobre a cor da pele, sobre meu olhar para minha mãe, sobre meu olhar para mim mesma, sobre o olhar que pessoas negras como eu podem ter. Penso que isso é muito coletivo. Até mesmo em países diferentes do Brasil, vejo essas questões surgirem. É um tema importante, esses poemas são muito importantes pra mim.
Mas há muitos outros poemas em que falo sobre identidade e não do meu ponto de vista pessoal e íntimo. A dedicatória do livro, afinal, é sobre identidade. E identidade é uma questão de saúde mental, muitas vezes de “diagnóstico”. Concordo contigo que é muito caro para nosso tempo histórico e político, com tantas coisas terríveis sendo feitas porque as pessoas buscam uma identidade, buscam pertencimento. Também.
TB: Ao longo dos poemas, encontramos indicações de várias interlocutoras — Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento, Elvira Vigna. Para você, qual é a importância de conviver com a escrita de outras mulheres?
JA: Em muitos casos, a escrita de outras mulheres tornou possível a minha própria escrita, como a de Conceição Evaristo e Beatriz Nascimento.
Eu leio mulheres, divulgo livros de mulheres, compro livros de mulheres. Faço questão, é uma prática política. E seria impossível não ter poemas dedicados não apenas a escritoras, como também a mulheres que estão nos movimentos sociais. No caso do “Um buraco com meu nome”, Débora Maria da Silva e Amelinha Teles. Porque são mulheres que me inspiram, todas essas, mas que também marcaram nossa história, abriram caminhos e são inimaginavelmente corajosas.
Dedicar poemas a essas mulheres é um ato de muito respeito, faço até com o coração apertadinho, esperando que recebam bem e compreendam minha intenção, porque meu amor por elas é imenso.
TB: Quais foram os prazeres e as angústias desse processo de escrita?
JA: As angústias são aquelas clássicas, né? Botar no papel, editar, trabalhar na divulgação, principalmente sendo autora independente. A angústia de me perceber começando do zero de novo, tentando compreender de onde vem tudo isso, se estou no nicho, se não estou, se em qual. Há muitas angústias. A vida é uma angústia, né, gente? Quem nunca?
Os prazeres são dois: confiar na minha ideia, que é algo que sempre acontece. Eu confio muito nas minhas ideias. Eu tenho cuidado com minha ideia, eu trabalho bastante por ela. E aí eu cuido do livro-objeto, eu quero tudo bonito, o projeto gráfico, eu faço presentes pros leitores que me apoiam. É um prazer que eu tenho, que faz parte do processo todo, incluindo da confiança que tenho na minha ideia.
E o outro prazer é que estou recebendo vários retornos de quem comprou o livro na pré-venda e tem sido tudo como eu desejava. É tão maravilhoso. São as palavras que eu queria ouvir e ler. Isso, para uma autora, é indescritível. Que compreendam o que você quis fazer.
TB: Em um dos meus poemas favoritos de “Um buraco com meu nome” há o verso “quero escrever coisas outras”. Sobre o que você deseja escrever, Jarid?
JA: Nossa, esse poema foi uma dor lascada. Eu escrevi esse poema para um projeto lindo, chamado Tertúlia, em que poetas vivas de hoje escrevem poemas dialogando/respondendo poemas de autoras já mortas. Eu escolhi Beatriz Nascimento e me preocupei bastante, me questionando se eu seria a única poeta negra, ou se Beatriz seria a única poeta falecida negra (acabou não sendo).
Eu ia escolher um poema com questões sobre a vida e escrevi uma resposta nessa mesma linha. Mas fiquei me sentindo na obrigação de falar sobre racismo, porque por dentro achava que ninguém falaria sobre isso. Então era minha obrigação, né? Eu, como negra. Eu, como alguém que escolheu Beatriz. Mas isso me revoltava e me doía. Por que, sabe? Por que eu não podia escrever sobre uma questão outra? Sobre cigarro, sobre uma janela, sobre o mar?
No poema eu digo exatamente isso. Eu quero escrever coisas outras também. Mas o primeiro ato é sempre uma pergunta: onde estão as negras?
TB: E por fim: Qual pergunta você gostaria de responder?
JA: Eu gostaria que me convidassem para um evento literário e eu participasse de uma mesa que não tivesse nada a ver com minhas características físicas ou geográficas. Queria participar de uma mesa em que eu respondesse perguntas sobre minha estética literária, sobre meus temas gerais, ou sobre um tema específico para além das questões que dizem respeito as minhas características físicas. Seriam várias perguntas. Imagina, que louco!
TB: Qual seria sua resposta para ela?
JA: Para aquela mesa, finalmente não seria “onde estão as negras?”.
No dia 18 de agosto, Jarid Arraes lança "Um buraco com meu nome" na Livraria Blooks em São Paulo a partir das 16 horas. O evento contará com bate-papo com a autora, performance de poemas do livro, sarau do Clube da Escrita Para Mulheres e microfone aberto. Além disso, todos que adquirem o livro ganharão três presentes exclusivos! Confirme sua presença no evento.
Esta entrevista foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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