Mulheres que escrevem entrevista: Valeska Torres

“Procuro, na performance, uma forma de falar para os meus”

Mulheres que Escrevem
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12 min readAug 5, 2020

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Foto por Fernando Targino

A Mulheres que escrevem entrevistou Valeska Torres, poeta, escritora, performer e estudante de Biblioteconomia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro em 1996. É autora do livro O coice da égua (Editora 7Letras, 2019) e publicou em diversas antologias, fanzines e plataformas digitais. Idealizadora e apresentadora do Podcast Garganta! disponível nas plataformas de streaming. Seu conto Conceição foi narrado por Elisa Lucinda no podcast Águas de Kalunga realizado pelo Museu de Arte do Rio. Em 2020, seu poema Tempos Porosos foi um dos selecionados pelo edital do Itaú Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência. Em 2017, foi selecionada para a residência no Festival Internacional de Poesia de Rosário (FIPR) na Argentina e no mesmo ano recebeu menção honrosa por sua participação no V Concurso Literário Professor Arnaldo Niskier com a crônica Marlene.

Mulheres que Escrevem: Como foi seu primeiro contato com a escrita? Como você começou a escrever?

Valeska Torres: Meu primeiro contato com a escrita aconteceu na escola, porém a escola não foi o principal motivador para que eu continuasse escrevendo. Meu contato com a escrita acontece mais tarde, quando entro em um projeto chamado Turista Aprendiz, que contava com duas etapas: a primeira consistia em várias oficinas, nas quais os participantes liam e escreviam bastante, depois esses textos eram publicados em uma revista. Essas oficinas contavam com a participação de diversos jovens moradores das periferias do subúrbio carioca e eram realizadas nas Bibliotecas Parques. Eu fiz na Biblioteca Parque de Manguinhos, em 2014, quando tinha 18 anos e estava terminando o Ensino Médio. A maioria dos alunos do “Turista aprendiz” também estava no Ensino Médio e por isso muitos de nós ainda não conseguíamos nos entender como escritores, como pessoas que podiam contar sua própria história, podiam contar outras histórias. Porque a escola, em geral, não é um lugar que motiva a escrita, por diversos fatores e diversas questões que envolvem esse ambiente. No meu caso, era porque estudava em um colégio noturno, onde a maioria dos alunos eram mais velhos do que eu ou eram pessoas que, como eu, precisavam também trabalhar. Não tínhamos a perspectiva de fazer faculdade depois disso. E de fato, vejo pelas redes sociais que a maioria dessas pessoas não deu seguimento aos seus estudos. Então, penso que saio da escola, saio do Ensino Médio, querendo fazer uma faculdade muito por conta da oficina do “Turista Aprendiz”, que me levou a conhecer a minha cidade, já que um dos principais pilares do projeto era levar seus alunos pra conhecer a cidade e o Estado do Rio de Janeiro. É bom ressaltar que esse projeto foi contemplado por um edital da Lei Rouanet, a partir da produtora Praga produções, idealizado pela Maria Pereira. E por ganhar esse edital, o projeto permitiu que várias pessoas de bairros suburbanos do Rio de Janeiro pudessem entender a sua cidade e, numa segunda etapa, outros lugares do Brasil. Essa segunda etapa selecionava de forma democrática, a partir de votações dos alunos e professores, quais alunos seriam indicados para conhecer outra região do país. E eu fui uma dessas pessoas selecionadas. Viajei para região Norte, fui pra Manaus e Porto Velho. Essa viagem define a minha vida. É uma viagem que entendo um outro Brasil. Viajo por três dias pelo Rio Madeira, entro em contato com diversos povos ribeirinhos, inclusive povos indígenas. Eu e meus colegas de projeto começamos a entender o que é ficar sem televisão, sem internet, o que é um rio cor de barro e nos aproximamos de uma outra literatura, de uma outra vivência, outra experiência, e só depois escrevemos sobre isso. Alguns escreveram contos, outros crônicas ou poemas. Esses trabalhos estão reunidos no livro “Rio ao Mar”, que é o resultado final do “Turista Aprendiz”.

MQE: Em que momento você entendeu que queria ser escritora? Quais foram as referências que fizeram você considerar a escrita como um ofício?

VT: Eu começo a ser entendida como escritora a partir do lançamento do meu livro “O coice da égua”. Por meio dessa publicação, passo a ser validada nos espaços literários. Primeiro porque poetas, com um caminho mais longo do que eu, leem meu livro e me contam o quanto a leitura foi significativa e divulgam em suas redes sociais, logo, outros poetas veem e de certa forma, isso gera um incentivo a conhecerem o meu trabalho. Também começo a ser convidada para eventos dentro e fora do Rio de Janeiro e recebo cachês por essas participações, isso muda minha relação com a escrita, já que me faz pensar que é possível me sustentar sendo escritora. Não que isso aconteça hoje em dia, mas me fez enxergar que existe um círculo, um lugar, em que é possível receber por aquilo que você escreve, o que muda a minha relação com a escrita e com como me entendo como escritora. Então, é preciso questionar também a partir de que locais nós recebemos essa validação enquanto poetas, a partir de quais revistas, eventos, outros poetas. Além disso, existem pessoas na Academia que começam a olhar meu livro como objeto de pesquisa e estudo. Esses acontecimentos me validam enquanto escritora para as pessoas. Agora, para mim, eu me entendo como escritora, a partir do momento em que quero que isso seja algo pertencente à minha vida. Isso acontece mais por volta de 2017, quando também confio mais em mim após ganhar um concurso no Festival Internacional de Poesia de Rosário. Eu ganho esse concurso e viajo pra Argentina, conheço vários poetas e, por conta dessa viagem, acredito muito mais no que escrevo. Assim, me fortaleço para continuar escrevendo. Isso foi um caminho para lançar meu livro e, consequentemente, começar a ser validada pelas pessoas por conta dessa publicação. Mas o meu processo de me entender como escritora vem antes das pessoas me entenderem como tal.

MQE: Você participou (e ainda participa) de oficinas criativas de escrita, certo? Pode contar um pouco da sua experiência com esses espaços de formação? Qual papel as oficinas cumprem na literatura contemporânea, na sua opinião?

VT: As oficinas criativas de escrita são fundamentais já que o meu primeiro contato mais profundo com a escrita se deu no “Turista Aprendiz”, que considero uma oficina criativa de escrita, já que a gente trabalhava literatura, a leitura e a escrita tanto de contos, crônicas e poesia. E é fundamental ter participado dessas oficinas com 18 anos, junto com diversos alunos e alunas que estão no mesmo patamar intelectual. Isso foi definidor para que eu permanecesse, me sentisse acolhida e envolvida por pessoas que me compreendiam também.

Logo depois aparecem algumas oficinas na minha vida. Uma delas é “Oficina Experimental de Poesia”, que é um espaço de formação também. Porém, participei dos encontros da Oficina quando ainda estava me entendendo e me desenvolvendo como poeta, então, às vezes não conseguia compreender muito do que era lido e discutido pelos seus integrantes. Mas foi um espaço muito importante, porque foi meu primeiro contato com discussões de poesia entre poetas que discutiam autores/as vivos/as. E isso era muito novo para mim, porque eu costumava ler os clássicos, os poetas que já morreram e é nessa oficina que começo a querer ler poetas vivos.

Atualmente, fiz a oficina online da Carol Dal Farra com a Ryane Leão, que foi definidora também pra ganhar bastante referenciais de poetas negras, tanto poetas brasileiras como de outros países do mundo. Elas apresentam um panorama de poetas que não são apresentadas no espaço acadêmico e nem mesmo por outros espaços literários, porque as pessoas não falam sobre essas poetas negras, lésbicas, periféricas. Então, foi uma oficina que me trouxe um conteúdo que pretendo usar tanto para a minha escrita quanto em oficinas de escrita. Também fiz uma oficina de poesia com o Rafael Zacca, que foi muito importante, porque me fez dar nomes a processos de escrita que já fazia de forma intuitiva e agora, ao nomear esses procedimentos, compreendo melhor o que eu faço. E, também, há pouquíssimo tempo, fiz a oficina do Carlito Azevedo, a tão famosa oficina do Carlito! Nessa conheci muitos poetas internacionais, ampliei minha visão sobre liberdade de escrita quando se trata de poemas, porque é possível escrever pensando diversas formas e temas. Além de ter feito algo que já fazia na oficina do Zacca, que é ler os poemas dos/as integrantes e pensar sobre, refletir, sugerir mudanças, pontuar incômodos, elogiar e dizer em voz alta sobre o quanto me afeiçoei a eles. Compartilhar experiências de leituras e escritas! Esse é o lance das oficinas.

MQE: Você pode contar um pouco como é seu processo de escrita?

VT: Meu processo de escrita não tem uma rotina. Não sou atualmente uma pessoa que escreve todos os dias. Não tenho uma regularidade em relação a escrita. Posso ficar meses sem escrever e posso ficar uma semana inteira escrevendo diversos poemas. Acredito que o ideal é ter uma regularidade, já que é um trabalho, mas respeito sempre meu corpo, meu humor e minhas questões mentais. Eu amo escrever, porque fico imersa. No meu processo de escrita, vivencio memórias, o gosto, o tato, a sensação, então tem muito da minha experiência. Mas não só isso, tem o prazer de mentir, de friccionar. O prazer de usar algo que aconteceu comigo, mas mudar a trajetória desse acontecimento, seja para aquilo que eu desejava ou para algo que não desejava. Então, gosto de todos os leques que a escrita pode me proporcionar. Gosto tanto de escrever quando estou sozinha com meu computador, quanto de estar em uma oficina de escrita e ter o prazer de falar para outras pessoas um poema ou uma crônica que escrevi. Acho importante ouvir o que pode ser mudado, o que pode permanecer, o que foi sentido pelo outra/o, fazendo toda essa construção em conjunto. Então, no meu processo de escrita tem tanto o prazer da solidão, quanto o de partilhar, dependendo da poeta que sou naquele momento.

MQE: E como foi o processo de publicação do seu primeiro livro, “O coice da égua”? Quando você sentiu que o livro estava pronto? Como escolheu sua editora? Qual foi a influência do trabalho de edição sobre o livro?

VT: O coice da égua” é um compilado de poemas que escrevi entre 2016 e até o final de 2018. O “indomável”, poema que abre o livro, foi o último a ser escrito, durante as eleições de 2018. Eu senti que o livro estava pronto a partir do momento que pedi para que poetas que admiro lessem meus poemas e o retorno delas/es foi fundamental para me sentir segura. Escolher minha editora foi também um trabalho de pesquisa, a partir das indicações dessas/es mesmas/os poetas que leram meu livro, revisaram e deram sugestões. A minha comunicação com a Editora 7Letras se deu de forma muito rápida. Em janeiro de 2019, entrei em contato pela primeira vez com o Jorge Viveiros, enviei o PDF do livro e ele me retornou em menos de duas semanas, elogiando e dizendo que tinha muito interesse. Isso também me deixou muito segura, já que a 7Letras foi indicada pela maioria dessas pessoas com quem conversei. E o Jorge decide, então, publicar o livro dois meses depois, junto com os lançamentos da Estela Rosa e da Ana Carolina Assis. Todo esse processo de publicação do livro demorou menos de cinco meses. O trabalho de edição foi fundamental, porque os editores pensaram em um livro de tamanho maior do que geralmente são os livros da editora, por considerarem a estrutura dos meus versos que são longos. Também me senti muito satisfeita com o processo da prova da capa, eu pude pedir até quatro provas e o Jorge foi sempre muito solicito. Então, fiquei muito satisfeita com a escolha da editora.

MQE: E como está sendo a recepção do livro?

VT: A recepção do livro vai muito ao encontro da leitura de tarô que fiz antes de lançá-lo. As cartas diziam caminhos abertos, porque muita coisa boa estava por vir e de fato veio. Veio o encontro com pessoas, com lugares, comigo mesma. Essa publicação me desafia a compreender o quanto a literatura mudou minha relação com a vida. O livro é fundamental não só para mim, mas também para a minha família. Já que a minha família começa a me ver como uma poeta, alguém que lança um livro e pode viajar de avião para outros estados para divulgar esse livro em eventos literários. São possibilidades que não pareciam estar ao alcance de alguém no meu núcleo familiar. Então, a partir do livro, eu alcanço espaços, alcanço outro modo de viver.

MQE: Desde que o “O coice da égua” foi lançado, você tem participado de muitos eventos literários, realizado performances e leituras em espaços públicos. Como tem sido essa experiência? Você acredita que as performances são uma forma de ampliar a circulação do seu trabalho? Qual é a diferença para você entre escrever e falar os poemas?

VT: As performances surgem como uma reação ao fracasso de participar de eventos dos slams e receber diversas notas baixas. A performance vem para que eu possa ir a um espaço do lado da minha casa, que é a Lona Cultural João Bosco, e possa ser ouvida com interesse e entendida. É uma forma de fazer com que as pessoas queiram prestar atenção no que eu digo. Já que uma das questões que coloco para mim mesma, às vezes como uma crítica é: Para quem eu estou escrevendo? Já que quem vinha até a mim depois que publiquei meu livro eram pessoas que já estavam dentro do círculo literário ou que vinham de espaços acadêmicos, e o meu interesse, se você for olhar o meu trabalho, é me deslocar dentro da minha cidade, seja Zona Norte, seja Zona Oeste, seja Baixada Fluminense, seja Zona Sul. Eu quero que as pessoas me compreendam em todos os espaços. É claro que nem sempre isso será possível, às vezes vou ser compreendida, mas não vai haver interesse daquele público naquilo que estou dizendo ou performando. Então, isso é uma crítica que começo a fazer a mim mesma e procuro, na performance, uma forma de falar para os meus. Realizar essas performances também me leva para outros espaços fora do Rio de Janeiro, por exemplo. Fiz um evento no Festival Sonora de Chapecó, onde fui muito bem recebida, e em outros espaços, como o Sesc. Assim, as performances também são a possibilidade de ganhar dinheiro, o que é muito importante. Ganhar cachê para realizar esse trabalho artístico me dá a possibilidade de me deslocar para outros espaços que nem sempre podem me remunerar, mas que me dão um prazer imensurável de fazer parte. Porque é o prazer de falar para os meus.

MQE: Além disso, você também criou um podcast, o “Garganta”. Qual é o objetivo desse novo projeto? O que te motivou a aderir a esse formato de mídia?

VT: Eu comecei a ouvir diversos podcasts por influência do meu namorado, Fernando Targino, antes esse formato de mídia não era próximo a mim. E passei a levantar algumas questões, por exemplo: Onde estão os podcasts em que podemos conversar sobre poesia trazendo poetas contemporâneos a partir de uma curadoria atenta aos recortes de raça, gênero, sexualidade e até mesmo regionalidade? Fiquei pensando muito nisso, em como considerar todas essas especificidades. Eu encontrei muitos podcasts literários, mas que falam de literatura de um modo mais geral, abrangendo vários gêneros, poesia, conto, romance. Não encontrei nada que fosse focado mais em poesia. Então, o Garganta nasce a partir desse objetivo e da vontade de aproveitar essa plataforma que é muito livre e acessível, porque você pode ouvir em diferentes contextos, dentro de casa, na escola, na rua. Além disso, esse formato de mídia serve como um registro. E esse registro que foi feito durante a pandemia, a primeira temporada acabou tocando muito nesse assunto. Acho que é um momento propício para esse tipo de encontro até mesmo afetivo, foi uma troca importante para mim e para as pessoas que participaram das conversas.

MQE: Você acredita que a conjuntura política e econômica influencia nossos processos de escrita? Como é, para você, escrever poesia no Brasil 2020?

VT: Com certeza a conjuntura política e econômica influencia. Escrever poesia no Brasil 2020, pra mim, é como se fosse voltar na epígrafe do meu livro “agradeço ao ódio, catapulta para os dias que estão”. Eu escrevo esse verso pensando no Brasil. Em 2020, o ódio é como um locomotor, locomotor para os dias que estão.

Para assistir a live feita em nosso Instagram com Valeska Torres, clique aqui.

Esta entrevista foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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