Mulheres que traduzem

Não se deixe enganar por sermos maioria

Carolina Walliter
Mulheres que Escrevem
3 min readMar 27, 2017

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(Imagem do filme A Chegada)

O grande e múltiplo universo da tradução, diferentemente de muitas áreas profissionais, é majoritariamente composto por mulheres. Só fui me dar conta desse fato há pouco tempo, reparando nas minhas fotos em congressos, cercada de colegas mulheres, e nos grupos de Facebook do ofício. Porém, já que hoje em dia ser maioria não é garantia de muita coisa (alô, alô, golpistas), as mulheres tradutoras ainda precisam lidar com atitudes e argumentos sexistas e extremamente problemáticos.

Para começar, assim como outras trabalhadoras, sofremos a pressão do estereótipo da mulher moderna, empoderada, dona do seu próprio negócio, cônjuge bem resolvida e muitas vezes mãe, e o que mais o valha. Com isso, a flexibilidade da nossa profissão, que leva muitas de nós a optar por trabalhar de casa, não raro sai como um tiro no pé, nos deixando ainda mais sobrecarregadas.

E, apesar de sermos maioria e gozarmos de respeito e admiração pelo nosso trabalho, principalmente na tradução literária, que é mais conhecida pelo público não tradutor, ainda temos nossa capacidade profissional questionada em determinados nichos. A localização de jogos, por exemplo, ainda é um espaço pouco ocupado por tradutoras porque infelizmente traz aquele ranço machista do mundo dos gamers, que insiste em desvalorizar a experiência da mulher apreciadora de videogames e, de quebra, ainda defende que discutir gênero é-besteira-todo-mundo-que-joga-quer-é-ver-peitos-mesmo.

A propósito, o que mais me estarrece na minha profissão como um todo é a falta de abertura para debater gênero como gente grande, sem bater ou morder o coleguinha, sem desbancar para preconceitos, intolerâncias e achismos do senso comum. E, em geral, essa resistência se justifica pelo injustificável: não vamos misturar língua com política e gênero, porque tradução não tem nada a ver com essas coisas.

É desconcertante ler e ouvir esse tipo de coisa vindo de tradutores, gente. Parem de passar essa vergonha. A língua é um instrumento político socialmente construído e o gênero que ela segue como norma não é mera coincidência. E, parafraseando uma querida amiga (Bianca Freitas, outra tradutora ❤), “não existe falar de língua sem falar de identidade. É o meu jeito de falar que me identifica como mulher cis, brasileira, carioca, etc. E não há como dizer que a língua não identifica gênero, porque senão as pessoas não diriam coisas como “fala que nem homem!” ou “ele fala que nem mulherzinha”. A língua é um instrumento de poder e, se houver vontade nossa, de empoderamento”.

Dito isso, acho que todos nós, tradutores, enquanto classe, precisamos parar um pouquinho, botar a mão na consciência e pensar que mundo é esse que estamos moldando com as palavras que escolhemos usar? É claro que todas as questões aqui levantadas são reflexo da lógica misógina que dita (cada vez menos, eu quero crer) o funcionamento da nossa sociedade. Mas eu, em toda a minha insignificância de ser uma tradutora entre milhares, boto fé nas longas durações, nas mudanças que vêm e avançam no ritmo do conta-gotas.

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Carolina Walliter
Mulheres que Escrevem

Escritora carioca, gosta de carnaval mais que o recomendado pela OMS. Historiadora de formação e ❤, nas horas ocupadas é tradutora e intérprete