Na foto ela sorria

Na salinha do SUS onde ele atendia, o rosto estava vermelho e brilhante de lágrima

RIDÍCULA
Mulheres que Escrevem
4 min readFeb 7, 2018

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O choro da neném era fraquinho. Uma vogal sem nome entre o A e o E, que ia e vinha em ondas, se erguendo e voltando a sumir no silêncio. A mulher ao lado de Teodoro não acordou. Era ele quem tinha o sono leve, talhado por madrugadas de plantão em prontos-socorros e alas neonatais no início da carreira. O sono ali era estritamente profissional. Havia beliches, onde dormiam vestidos, prontos para suturar ferimentos, extrair balas ou reverter uma parada cardíaca com as babas do sono úmidas no rosto. Ainda hoje, no colchão alto como um filé de restaurante que dividia com Leila, sentia uma espécie de urgência. Como se o fato de despertar naquele horário significasse que em algum lugar havia alguém que precisava que colocasse intestinos de volta na cavidade correta. E com certeza havia.

A emergência de agora, porém, era muito mais tranquila. Esquentar uma mamadeira com o leite que a esposa tinha bombeado, trocar uma fralda. Um jato de urina no momento errado era o pior que podia esperar. Com cuidado, pegou o celular no criado-mudo para iluminar o caminho. Entrou no templo cor de rosa que era o quarto da filha, macio de pelúcias e paninhos. Devia ter caído de novo no sono. Ela dormia como ele, com a barriguinha pra cima. Um vento suave a entrar e sair do nariz miniatura. Toda miniatura. Mini dedos com mini unhas irrregulares, já que nunca foram cortadas. Sentiu a grande mão do amor apertá-lo entre seus dedos, como sempre acontecia ao vê-la dormir. Iria proteger sua menininha desse mundo tão perigoso. Ainda sentia o choro zunindo nos ouvidos, aumentando, diminuindo. Não ia cair naquele golpe: levantar, ir para o quarto pé ante pé, deslizar mornamente para um sonho para no mesmo momento ser chamado de volta pelo rebento. Decidiu esperar na poltrona.

Ao desbloquear o celular, um susto. Mensagens e mais mensagens de um número desconhecido. Nesse horário, só poderia ser uma coisa. Paciente. As mães sempre se desesperavam. Tinham certeza que ranho podia ser uma doença letal e de que três da manhã é um horário normal para fazer perguntas ao médico. Essa deu sorte. Tocou na tela para aumentar a bolinha que continha a foto da mulher. Olhos muito pretos e boca simétrica, com lábios de cima tão grossos quanto os de baixo. O corte da imagem não deixava saber o comprimento do cabelo. Parecia vagamente com uma meia dúzia de pacientes da rede pública, que vinham uma vez, talvez duas e sumiam. Mas, para elas, ele nunca dava seu celular. Pôs no colo um urso exagerado, presente de sua sogra, e foi ler o que o diabo da mulher queria.

A maioria das mães abria as mensagens se desculpando pela hora e pelo inconveniente. Essa não sentiu a menor necessidade disso. Começava como se tivesse retomando uma conversa que tinham parado no meio. Assim, Olá doutor. Como se tivesse topado com ele na fila do pão. Perguntou se lembrava dela, Laura, e que se não fosse por ele, por suas palavras duras, não teria levado a gravidez até o fim. Não sozinha em São Paulo. Não depois do horror com que o namoradinho recebeu a notícia. Aos poucos lembrou. Não a reconheceu antes porque na foto ela sorria. Na salinha do SUS onde ele atendia, o rosto estava vermelho e brilhante de lágrima.

Ela escrevia com algumas letras trocadas, em frases que se quebravam em várias linhas, cada uma alojada em um balão próprio. O filho dela tinha nascido, dizia, um menino saudável, quase 4kg, muito cabelo. Teodoro elevou o rosto na direção em da filha e pensou na criança que ele havia salvo, dormindo também em algum lugar. Acariciou o urso desproporcional enquanto reencenava na cabeça a bronca monumental que tinha passado naquela garota que se atreveu a perguntar — em pleno posto de saúde! — quem poderia procurar para fazer um aborto. Com rosto redondo de menina, mas com idade suficiente para engravidar. E se responsabilizar. A fez prometer que não faria nada, que deixaria a natureza seguir seu curso e que, se aquela ideia voltasse, ligasse para o número dele, estampado no cartão que entregava.

Agora lá estava ela, como adulta. Mãe orgulhosa. Descrevia como a criança era bonita e chorava pouco. Teodoro sorriu. Que mãe não se apaixonaria pelo seu próprio filho? Laura agradecia dizendo que ele era um homem bom. Que ele, que sabe tanto, saberia o que fazer. Que não foi nada fácil de achar, mas a casa do doutor era muito bonita e ela sabia que seu neném seria muito bem tratado. Por ele, que se preocupava tanto. O som dos lábios de Teodoro entreabrindo foi audível antes do choro voltar longe, baixinho, intermitente como código morse.

A filha dele permaneceu calada.

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Esse conto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Nathalie Lourenço, publicitária e ridícula de nascença. Autora dos Livros Morri por Educação e Sabor Idêntico ao Natural. https://linktr.ee/natlourenco