Por acaso [Fotografias da autora]

O acaso que mora nos livros

[Experiências de leitura #7]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem
6 min readAug 9, 2017

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Sinto falta de um pouco de espontaneidade quando vou escolher livro agora que praticamente só compro online. Não é que eu não tenha me adaptado, ou sinta só um saudosismo bobo por como as coisas eram antigamente. Sinto sim saudades de morar em uma cidade que tenha livraria. Mas nesse caso, acho que o que me faz falta é aquele prazer que eu sentia de num único passar de olhos ter dimensão da quantidade de livros que existem, que me fazia entender o quanto as nossas escolhas são aleatórias. Diante de tantas escolhas é completamente inútil achar que se controla qualquer coisa, porque tudo é acaso.

Na última viagem que fiz, fiquei pensando sobre a aleatoriedade dos nossos passeios e comparando com a aleatoriedade das nossas leituras. Às vezes ainda penso em viagens como um tempo escasso: você tem um tempo limitado pra estar ali naquele lugar e tem as coisas que quer ver, as coisas que acha que tem que fazer e experimentar. Você tenta se ajustar, tenta correr, passa por certas coisas rápido, pra caber tudo o que te parece indispensável. Dificilmente a gente senta pra se perguntar por que essas coisas são necessárias, quem foi que definiu que é preciso se interessar por arquitetura, história ou por compras, ou pelo que quer que seja. Por que, exatamente, teríamos que ir a algum lugar para ver algo quando temos tantos outros sentidos, tantos outros tipos de saberes, emoções? São tantas as experiências disponíveis…

Isso me ocorreu numa manhã em que desci pra área externa do prédio da casa dos meus sogros, onde eu estava hospedada. Fui com o propósito de ler, tomar um sol e descansar um pouco, porque o ritmo vinha muito intenso com todas aquelas coisas que eu achava que precisava fazer durante a viagem. Enquanto tomava sol, me senti profundamente feliz. Eu estava aquecida, morna, usava uma blusinha leve que não tirava da gaveta há meses. Tirei as meias, fiquei descalça. Subi a barra das calças de moletom, me senti leve. Há quanto tempo eu não tomava sol desse jeito? Por mais banal que soe um passeio em que se toma sol numa manhã de inverno, estar ali daquele jeito era uma coisa que me pareceu que eu só poderia fazer naquela cidade — talvez em outras, certamente não na minha, mas era afinal ali que eu estava.

Nenhum manual de turismo e talvez nenhuma lembrança minha pudessem pensar nisso como um passeio possível, mas era, afinal, tudo o que eu mais precisava. Fui a Belo Horizonte tomar sol casualmente e esse foi um dos pontos altos da viagem, uma das coisas que me fez muito feliz.

É desse tipo de espontaneidade que às vezes sinto falta na forma online de comprar livros. Da falta de pretensão de estar num lugar, num passeio e fazer algo completamente fora dos roteiros. E mesmo que a ação seja completamente ordinária, perceber nisso uma possibilidade singular.

Agora, quase sempre tenho alguma lista em mãos quando compro. Nela estão os livros que vejo as amigas falarem, estão as indicações das newsletters que assino esperando ouvir como as leituras têm afetado as pessoas, ou algum título que aparece em outra leitura e que me deixa com a pulga atrás da orelha. Antes, essa lista também existia — embora eu não tenha muito apreço por anotações e prefira mesmo o que guardo no coração — mas ainda me ressinto pela vivência física de sentir um certo assombro pelo tamanho dos acervos. É quando me vejo pequenininha no meio de um universo imenso que fica mais evidente que não tenho muito como apontar pra nenhuma direção.

Aproveitando que estava na "cidade grande", entrei numa livraria pra tentar pensar um pouco sobre essa aleatoriedade enquanto tomava um café. Acabei esbarrando num livro de entrevistas com a Nise da Silveira, que a havia falado em uma newsletter sua há tanto tempo, que já até havia desistido de comprar — na época, descobri que no site da editora estava esgotado. A Nise é uma psiquiatra inovadora que, muito antes da gente falar sobre luta antimanicomial, já questionava a internação e o isolamento dos pacientes. Ela pensava e experimentava a arte como terapêutica. Também esbarrei em um livro sobre gênero e meio-ambiente, da Loreley Garcia, professora de sociologia da UFPB, e me lembrei das recomendações seguidas da Josi Wedig, amiga com quem divido a organização do #LeiaMulheres na nossa cidade, de ler Vandana Shiva. Vandana Shiva é uma pesquisadora e ativista ambiental indiana que tem formação em física, mas sua principal contribuição é na área do ativismo ambiental. Ela é uma defensora das sementes livres, da celebração da biodiversidade e entusiasta dos conhecimentos tradicionais dos povos. Ela faz uma aproximação entre nossa concepção sobre a Terra como mãe e a condição feminina, e como essa concepção nos ajuda a entender a exploração que ambas estão sujeitas. É de uma ressonância incrível com as coisas que penso, mas ainda não tinha achado um espaço pra encarar a leitura. Comprei o livro, que não era da Vandana pra servir de lembrete de que preciso atender as batidas que a autora vem fazendo na minha porta. E lá estava ela, dentro do livro, esperando pra falar comigo.

Já de volta à casa dos sogros, agora devorando esses dois novos livros todas as manhãs enquanto tomava sol, tentei pensar num consolo por saber que não vai haver pra mim em breve outra oportunidade de topar com a aleatoriedade das livrarias.

O acaso dos livros nem sempre está na escolha. Há sempre o acaso que vai estar lá dentro deles, o acaso do que vai falar comigo hoje — porque toda vez que resolvo reler um livro, me surpreendo com o inesperado nas anotações e nas sensações que ficaram. A gente tem tanta leitura por obrigação que às vezes se esquece de como fazer isso sem muita estrutura.

Penso que é preciso tornar as coisas um pouco mais simples. É claro que é mais fácil falar do descompromisso quando se está de férias e se pode descer e tomar sol, sem nenhuma promessa. Essas coisas nos deixam entrever facilmente o quanto a vida pode ser fortuita. Se há algo que fica dessa experiência de um passeio em que apenas se pode ser, é que o modo como nos sentimos com as coisas que encontramos é a única coisa capaz de nos levar pelo rumo necessário.

Por falar em acasos e livros

A falta de certo assombro físico de sentir-se soterrada pelas tantas possibilidades de uma livraria não é suficiente pra que a gente não perceba o quanto nossa própria vivência literária é cheia de acasos, encontros fortuitos, conversas fantásticas. Se quiser dar continuidade nessa prosa, dê uma olhada nesse outro texto:

Bibliotecas Imaginárias (, em Velocidade de Escape #20) — Neste ensaio, Gabriela se interroga sobre os livros com os quais topamos por aí e que compõe a nossa biblioteca particular utópica. Esse é um jeito de tentar entender sobre nossos roteiros de navegação no mundo e por isso ela também entrega seu próprio (e casuístico) mapa. Esse itinerário, porém, não tem nada a ver com os livros que julgamos serem "bons": Eu quero saber é se você já choraram (de encantamento ou de raiva) com poesia, e com qual poesia. Nossos livros favoritos podem coincidir ou não com livros considerados geniais. E nossas estantes podem ser arrumadas sob configurações muito bizarras para qualquer um que não more dentro da nossa cabeça e não tenha, portanto, a carteirinha de usuário de nossas bibliotecas imaginárias. Nessas horas eu sempre lembro daquele personagem do Nick Hornby que dizia arrumar sua coleção de discos a partir de uma ordem sentimental, que não fazia sentido para qualquer outra pessoa.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem