O desejo como movimento em “Controle”

Uma resenha do romance “Controle” de Natalia Borges Polesso

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readJan 22, 2020

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*No episódio #38 do MQE Podcast, realizamos mais uma edição (do já clássico) amiga invisível/oculta e Seane Melo me indicou o livro “Controle” da Natalia Borges Polesso. A indicação se tornou minha primeira leitura do ano e foi tão acertada que resultou nessa resenha. Obrigada, Seane ❤

Publicado em 2019 pela editora Companhia das Letras, “Controle” é o primeiro romance de Natalia Borges Polesso, autora de livros premiados, como “Amora” e “Retratos para álbum de fotografia sem gente”. O romance conta a história de Maria Fernanda, ou melhor, Nanda, uma personagem que tem sua vida transformada após uma queda de bicicleta aos nove anos. A queda como uma experiência de perda de controle é um elemento fundador do livro. É a queda que leva Nanda à epilepsia e são as quedas — nas crises, nos tombos e no amor — que forçam movimento em sua vida. Entre ausência e excesso, o movimento também norteia a narrativa, dando corda em seu ritmo. Em algum momentos, parece que a história, narrada em primeira pessoa, quer escapar, sair sem freio e nos atravessar sem chance de nos deixar impunes. Nanda conta sua vida como quem, depois de muito tempo em repouso, tivesse redescoberto o prazer da velocidade, o prazer de abrir mão do controle.

Em cento e setenta e duas páginas acompanhamos desde a queda que irrompe a primeira crise de ausência de Nanda até uma outra queda, aos trinta, provocada, dessa vez, por uma experiência de desejo. Nesse ritmo acelerado, entre uma página e outra, podem se passar dois, cinco, dez anos; porque, quando perde o controle de seu próprio corpo, Nanda se ausenta e deixa o tempo correr. As crises provocadas pela epilepsia fazem com que ela seja obrigada a reconfigurar sua identidade, sua rotina, seus sonhos. Embora seja instruída que sua condição não define seu destino, seus pais, colegas, professoras e até ela mesma não parecem conceber a epilepsia dessa forma.

A cada crise, a superproteção, o estigma social e o medo se agravam. Em consequência, Nanda é privada de experiências formadoras e forçada a se isolar. De início, ela encontra conforto nessa solidão com a ajuda dos fones de ouvido e das músicas do New Order, fugas que parecem aceitáveis e “normais” para uma adolescente, um isolamento brando que pode ser facilmente interrompido. Mas, aos poucos, o isolamento vai se tornando uma forma de vida, as perdas se acumulam, a solidão e a sensação de atraso parecem intransponíveis.

“Não sei se é medo ou nojo ou um cansaço infinito. Mesmo que agora até as crises de ausência tenham diminuído, mesmo que a medicação esteja funcionando bem, mesmo que tudo esteja indo tranquilamente, eu não consigo me desvincular dessas coisas, dessas faltas. Eu disse que não importava, mas importava, sim, Parece que fiquei com um monte de lacunas para completar. E eu não sabia com que completar.”

Em um mundo em que algumas experiências já são impedidas ou renegadas a lugares privados, a privação, que Nanda enfrenta por ser epiléptica, se transforma também na impossibilidade de conhecer a si mesma. Por muitos anos, Nanda deixa (ou é obrigada a deixar) escapar um autoconhecimento que se constrói com a perda de controle, com o encontro com aquilo que tememos mas também desejamos. Enquanto, por uma cobrança social, ela se constrange por não ter respostas satisfatórias aos familiares que perguntam sobre os “namoradinhos”, seus desejos pairam desconhecidos e impronunciáveis. Mas é também esse mesmo desejo, conflituoso e incontrolável, que impulsiona Nanda a se perguntar: O que fazer com o que fizeram de mim? E é assim que o movimento estanca como uma vontade de vida ingovernável.

“A gente podia mesmo sonhar. Naquela noite, me permiti pensar sobre viagens loucas, sobre o lado selvagem da vida. Me permiti espiar o longe e confesso que senti um oco. Leveza profunda. Cabia muito ar se eu respirasse fundo. Cabia muita coisa se eu abrisse espaço, se deixasse a sanha de lado e o medo, quem sabe pudesse preencher o oco com outras sensações mais amenas, mais tenras. Sei que foi difícil dormir, depois que senti as mãos de Joana passando em cruz sobre o meu peito. Depois de sentir sua respiração quente umedecendo meus cabelos e outros lugares. Eu, com as mãos embaixo do travesseiro e, sobre ele, minha cabeça, que fervilhava de um jeito inconveniente e que até então eu não tinha permitido. Senti a ponta dos dedos formigar. Os espaços se imundando. Os braços da Joana desacelerando a noite. O mundo longe, preocupado com suas coisas de mundo. Nós na cama, guardadas”.

Esse desejo se constrói a partir de seu relacionamento com Joana, sua melhor e única amiga desde infância. Polesso descreve essa relação amorosa colocando em palavras silêncios, suspiros, incertezas e intensidades que são constantemente apagadas na literatura ou na história da arte em geral. Assim como em “Amora”, livro de contos que narra apenas histórias entre mulheres lésbicas e/ou bissexuais, em “Controle”, encontramos a habilidade de Polesso de narrar o que há de particular — e, no entanto, acessível a qualquer sensibilidade — nos relacionamentos entre mulheres e, principalmente, na descoberta desse afeto, desse desejo.

A narrativa de Polesso, ao acertar lembranças íntimas e dar concretude a anseios silenciados, torna possível enunciar como amor o que já foi algum dia impedido de habitar esse nome. Assim, a experiência de ler “Controle” amplia nosso imaginário social, porque são histórias como essa que nos encorajam a ressignificar memórias e se entregar a começos.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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