O passaporte ou a vida: poetas mulheres em trânsito

Poetas brasileiras e o progresso da poesia portuguesa

Fernanda Drummond
Mulheres que Escrevem
5 min readJul 24, 2017

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Nota: Primeiro tenho que fazer uma confissão: não sou poeta, sou uma reles doutoranda, tô acostumada a escrever textos acadêmicos e um pouco engessados & caretas. Como teria horror a submeter as leitores da Mulheres que escrevem a esse suplício, preciso fazer uma mudança de tom que não sei se vai dar certo. Depois vocês me contam.

Eu vim aqui mais para dar notícias: falar de umas poetas, jovens, viajantes, leitoras de poesia contemporânea (principalmente portuguesa e/ou de autoria feminina), cujas existências estão atravessadas pelo contato direto com Portugal, com crítica portuguesa e com a literatura feita em Portugal. São elas: Tatiana Pequeno, Júlia de Carvalho Hansen e o trio Érica Zíngano, Roberta Ferraz e Renata Huber, o qual escreveu um volume a seis mãos. Essas autoras têm coisas em comum: são pesquisadoras de Literatura Portuguesa (e outras literaturas também), moraram em Portugal, ou vão lá com alguma frequência, e, obviamente, apesar da identificação com o estrangeiro, são brasileiras e escrevem literatura brasileira. O que me interessa no entrecruzamento dos escritos delas é o interesse que têm de tomar parte nessa literatura brasileira a partir do estudo e leitura de uma poesia de outra dicção, outra sintaxe, com outro vocabulário.

É, no fundo, algo que vimos acontecer com o fenômeno Matilde Campilho, que misturava, a partir de sua experiência biográfica de ter vivido entre Rio de Janeiro e Lisboa, o léxico português ao carioca. Mas, no caso das nossas compatriotas, trata-se de um entranhamento mais profundo. A poesia delas está ligada ao progresso dos textos portugueses. E a literatura portuguesa tem, há séculos, uma forte tradição de poetas mulheres. A primeira poeta de que se tem notícia a escrever em Portugal é Mariana Alcoforado, uma freira do século XVII que, de modo sintomático, escreve clandestinamente textos de caráter erótico a seu amante. É claro que já se duvidou da autoria dos textos: duvidam que tenham sido escrito por uma pessoa só, duvidam que tenham sido escritos por uma mulher.

Desde Mariana Alcoforado temos visto uma explosão de mulheres poetas a escrever contra o sistema patriarcal, machista, racista e colonial português, especificamente durante o século XX: Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Ana Luísa Amaral, Adília Lopes etc etc, ao infinito e além. Entre 2005 e 2017, então, mais umas tantas andam publicando com certa regularidade. Não é de se espantar que essa multiplicidade de poetas encontrem eco na produção de brasileiras que vive(ra)m em Portugal. Por exemplo, Tatiana Pequeno, hoje professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal Fluminense, sugere um diálogo com Mariana Alcoforado, a freira, do seguinte modo:

(…) em ti foi possível um
pouso longo de asas, marco alfa em
nome de uma mulher funda em corpo
de paisagem muito alta. da tua pele,
Mariana, eu nunca esqueci o açoite e
é por isso que em ti agora existo e
me encontrava;

São poetas que vão à escola, “aprendem a ler para ensinar seus camaradas”. É, então, lógico que apareça uma relação entre o escrever e aquilo que a poesia ensina, como diz Júlia de Carvalho Hansen:

Voltar a estudar, não sei
mais compor meus poemas.
Que alegria! Como quem viaja
pela estrada começar a fumar
seu próprio dom e ritmo.

Não havia superfície que não fosse
estilhaçada no caleidoscópio
e o olho da imagem
continua sendo o que se pode ver:

ramagens, dicionários, rachaduras
no concreto, existindo deus!
a imaginação! Como gostaria
de poder ver o poder ver.

O que eu penso dessa poética é que ela se inscreve numa longa linhagem europeia ligada à imagem, da qual a poesia portuguesa bebeu muito, principalmente durante o Surrealismo. Por isso há “olho da imagem”, estruturas “caleidoscópicas” que criam o poema, o poder de “ver”, “imaginar” — ou seja, criar imagens. E isto não vem só do contato com a literatura, afinal elas são viajantes. Ver, contactar imagens vem também de viajar (“perder países”, como diz Fernando Pessoa), transitar, interagir com a paisagem. Aí chegam poetas homens que também trabalham com isso: Ruy Belo, Al berto (este gay e que morre nos anos 90 de AIDS), Luís Miguel Nava.

Júlia de Carvalho Hansen, num livro escrito inteiramente em Portugal e lá publicado em primeiro lugar — alforria blues ou Poemas do Destino do Mar — viaja assim por Lisboa:

Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami
que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada
nesta porta de varanda sobre o Tejo.
Não sei, mas já me aconteceu outra vez.
A onda atravessará os homens pela minha face
fazendo das raízes turbilhão. Os versos também
se fazem assim, procurando
o caminho por onde não podem passar.

Luiza Neto Jorge, poeta portuguesa que escreveu entre os anos 60 e 80, tematiza muitas vezes o corpo marcadamente feminino, que seria rebelde, em resistência, “insurrecto”. Descreve, em “O Corpo Insurrecto”, um assalto erótico, surreal, de um homem a uma mulher nua:

tendo o corpo nu,
a carne ardida,
lhe pede o ladrão
a bolsa ou a vida.

Se ao eu lírico de Luiza se pede a bolsa ou a vida, em troca de sua nudez, à poesia das brasileiras em trânsito se pedem o passaporte e a vida. No “saber de experiências feito” dessas mulheres, deambular por Portugal, seja geográfica ou literariamente, se torna fundamental para construir certas paisagens poéticas, para elaborar modos de ver, de edificar imagens.

Não quero chegar a conclusões aqui, porque não existem conclusões possíveis para uma crítica precipitada (e curta demais) a livros que saíram ao longo da última década: fio, fenda, falésia, de Roberta Ferraz et al., foi publicado em 2010 (vencedor do prêmio da Secretaria do Estado da Cultura do Governo de São Paulo); Aceno, de Tatiana Pequeno, em 2014, e Seiva Veneno ou Fruto, de Júlia de Carvalho Hansen, em 2016. Mas como não podemos escrever alienadas do nosso próprio corpo, a temática da mulher escritora tem que aparecer. E me parece que esse último poema, do livro em trio de Roberta Ferraz (com Érica Zíngano e Renata Huber), traduz algumas das angústias de ser um corpo com órgãos (“seio”, buceta e tudo), “escrevente”.

escritora não
uma mulher a escrever ou
uma fêmea escrevente, uma cisma
com seio e golpe de mão
bifurcando este teu talvez — uma menina
prática, afotografável
uma equilibrista com gaze nos joelhos
esta anfíbia clorofilada em jejum, esta moça

esta: toda enfeitada de vermelho
para dizer adeus

Ficha técnica dos livros citados:

Título: Aceno
Autora: Tatiana Pequeno
Editora: Oficina Raquel
Ano: 2014
Páginas: 88

Título: Fio, fenda, falésia
Autoras: Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz
Editora:
Independente
Ano: 2011
Páginas: 112

Título: Seiva, veneno ou fruto
Autora: Júlia de Carvalho Hansen
Editora: Chão da Feira
Ano: 2016
Páginas: 50
Primeiro capítulo: clique aqui

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Fernanda Drummond
Mulheres que Escrevem

Doutora em Literatura Portuguesa, professora, tradutora & flautista.