O testemunho em “O Martelo” de Adelaide Ivánova

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
8 min readSep 23, 2020

1. O Martelo é um livro de Adelaide Ivánova, poeta, escritora, fotógrafa e jornalista nascida em Recife, atualmente vive na Alemanha. Lançado em 2015 pela editora portuguesa Douda Correria, O Martelo foi publicado no Brasil em 2017 pela editora Garupa em uma edição com quatro poemas inéditos: “para laura”, “o broche”, “o ministro” e “o sismógrafo”. O livro de 73 páginas e 29 poemas foi “impresso em pólen bold na mastergraph no rio de janeiro, 134 dias depois do golpe”. Como parte de seu projeto gráfico, cada livro vem guardado dentro de um envelope e contém uma “fina camada de tinta vermelha que cobre a capa e suja suavemente as mãos de quem o encosta. Deixando rastros por onde passam os dedos (…)”. Meu exemplar tem algumas manchas nas páginas 49, 37, 15, 13 e uma dedicatória da autora com a data 24/01/17.

2. O livro se divide em duas partes, em ambas os poemas apresentam personagens e/ou eventos como seus títulos indicam: “a visita”, “o elefante”, “o urubu”, “o juiz”, “a sentença”, “o ministro”, “a mulher casada”, “o marido”, “o divórcio”, “o domador”, entre outros.

3. “o martelo” é o título de dois poemas, o primeiro e o último do livro. O martelo que abre o livro é um objeto definido. Ferramenta que a narradora usa “embaixo do travesseiro caso alguém entre de novo”. O segundo martelo são muitos. Um significante aberto que passa pelas mãos do papa, de atletas, de Marx, de Adorno, do Maracatu, dos bichos, de uma mulher que quer dormir bem ou pregar pregos.

4. “caso alguém entre de novo” é um verso que instaura uma temporalidade: houve um acontecimento e há o risco (ou o medo? ou a possibilidade?) de que isso se repita.

5. Em uma carta para Julia Raiz publicada no blog da editora Garupa, Julia Manacorda diz “se testemunhamos é porque sobrevivemos”. Essa máxima é construída em diálogo com uma citação do poeta Ocean Vuong, “the female gaze is also the gaze of the witness”, algo como “o olhar das mulheres é também o olhar da testemunha”. Aqui, na conversa entre as poetas Manacorda e Raiz, as palavras “testemunha” e “mulheres” são significantes que podem puxar significados diversos. Mas todas sabemos o que significa sobreviver.

6. A referência direta ao estupro aparece pela primeira vez no terceiro poema, “a banana”, no qual encontramos a personagem Josefine, que se esconde em uma mala com “a ajuda da mãe para / que não fosse estuprada / afinal só se estupra alguém que se acha (…)”.

Derivados da palavra “estupro” retornam na segunda parte do livro, em seu penúltimo poema, “o domador”. Aqui o personagem é Humboldt, alvo de desejo que atravessa a narrativa d’O Martelo. Humboldt é um corpo masculino. Aqui o cenário é outro. Acontece em outro tempo verbal: “te estupraria” é o que enuncia a voz poética situando o ato não como um fato, mas como uma possibilidade. “te estupraria se pudesse por vingança pelo não-obrigado por teres me rejeitado mas não tenho corpo necessário. O estupro é escrito, então, como uma violência que pode ou não ser feita, ou seja, como uma escolha e como um gesto de poder.

“o seu pau que não chupei porque você não deixou” diz uma voz poética frustrada a um Humboldt que dorme nu (e tranquilo) ao seu lado.

O que limita o poder parece ser, então, uma questão de ter ou não um certo tipo de corpo.

7. “Corpo” é uma palavra que se repete ao longo do livro em um uso particular. Em “para laura”, a palavra corpo se repete três vezes em referência aos corpos de Matthew Shepard e de Laura de Vermont, corpos que, por não se enquadrarem nos limites impostos por um sistema patriarcal, foram brutalmente violentados e mortos.

Se em “para laura” a voz poética narra a violência em memória de uma jovem mulher que foi “assassinada pela nossa indiferença e pela polícia brasileira, em “o urubu” encontramos a voz poética de um testemunho. Em “o urubu”, o corpo violentado é o corpo que testemunha. A violência que esse corpo testemunha é institucionalizada (assim como a violência, praticada por uma instituição como a Polícia Militar, da qual Laura foi vítima), é uma prática que se executa com palavras e com a ciência. A violência é a expressão corpo de delito, que transforma o corpo em um lugar e delito em um adjetivo. É o exame como um instrumento necessário para comprovar o testemunho de um corpo violado. É o método que verifica o corpo de “mulheres vivas” como se fossem “peças com coisas”.

Mas a palavra “corpo”, tanto em “para laura” como em “o urubu”, tem um outro uso. O corpo não é só uma coisa inerte, um cadáver, uma palavra. O corpo é também aquilo que se reivindica. Ao dar à Laura, ao médico e a si mesma um corpo, a voz poética convoca um gesto ético. Situa essas existências dentro de uma materialidade, na qual o corpo, como matéria essencial à vida humana, é construído socialmente. Assim, O Martelo testemunha em forma poética as relações de poder, os recortes, que marcam as distintas experiências de cada um desses corpos.

A voz poética em “o urubu” dá ao médico que executa o exame de corpo de delito um corpo. Ao tratá-lo como uma pessoa que assim como ela tem um corpo e gosta de coisas banais como cervejas e telefonemas, a narradora afasta o corpo do médico de uma monstruosidade. Esse corpo tem escolha; pode ou não fazer algo. E porque há escolha, há, portanto, saída ética. Não fosse a desumanização sistêmica de nossa sociedade, Laura também teria direito ao seu corpo e ao seu nome, Laura de Vermont. Entre esses dois corpos, a voz poética radicaliza o que ainda pode fazer. Enquanto testemunha ao mesmo tempo em que narra sua própria objetificação, toma para si o seu corpo.

8. Se pensarmos a voz poética como uma voz que se posiciona, a voz poética em O Martelo é a de uma narradora que conta o que aconteceu como se ainda estivesse acontecendo. Talvez porque alguns fatos não caibam na objetividade de um acontecimento pontual, mas sejam eventos constitutivos.

Em Teoria King Kong, Virginie Despentes dá um testemunho do estupro do qual foi vítima aos 17 anos, assim como da recepção de sua obra Baise-moi, a qual também tem o estupro como tema. No ensaio “Impossível estuprar essa mulher cheia de vícios”, Despentes define o estupro como um acontecimento fundador que é, ao mesmo tempo, algo que a desfigura e a constitui: “O estupro, para mim, tem essa particularidade: ele nos deixa obsessivas. Retorno a ele o tempo todo. Vinte anos depois, toda vez que penso ter acabado com essa história, retorno a ele. Para dizer coisas diferentes, contraditórias”. (DESPENTES, 2016, p. 44). Em seu testemunho, ela articula os diferentes eventos que participam do trauma, demonstrando a inscrição do estupro dentro de uma estrutura opressora que, por sua vez, também circunscreve qual é a maneira legítima de sobreviver ao trauma, ou seja, qual vítima é digna de credibilidade. Como uma mulher cheia de vícios, Despentes, a partir da forma como testemunha, coloca em cheque aquilo que se espera de uma vítima — sobrevivente que deve ser para sempre fragilizada e muda -, porque fala sobre o que aconteceu; porque se recusa a dirigir a violência contra si mesma e abandonar seu próprio desejo (DESPENTES, 2016, p. 40–41).

9. Em “a visita” e “os testículos”, as únicas testemunhas são as traças.

Antes de retornar em “os testículos”, a palavra “testemunha” se repete três vezes em “a visita”. Já a palavra “colchão” aparece cinco vezes e a palavra “cama”, duas vezes. O colchão pode ser o colchão marcado pela ausência, o colchão de visitas que Humboldt não buscou. Pode ser um outro colchão, o colchão maldito em que as traças testemunham “outra visita o arranque o violento o sangue”. O colchão de uma cama da qual nunca mais se pode sair. E o colchão compartilhado de uma outra cama em que o desejo permanece, ainda que frustrado. Como o colchão que podem ser muitos, também a mulher que narra pode ser outras entre os bichos, “traças aranhas piolhos e outras bestas”, e as camas. Pode, em um mesmo poema, carregar o peso de existir bestas menos confiáveis que traças e se lamentar com graça de que apenas as traças e Humboldt não a comeram.

Em “os testículos” a palavra “testemunha” se repete duas vezes, enquanto a palavra “vítima” aparece duas vezes em um pequeno parênteses que narra as condições possíveis para que uma vítima seja reconhecida como legítima, no Paquistão e na Inglaterra do século 18. Já “as traças”, retornam para marcar a ausência das testemunhas que “não viram nada como as traças mas defendem com histeria a inocência (…) como podem ser chamadas de testemunhas testemunhas que lá não estavam (…)”. Aqui as testemunhas são, pela língua, aproximadas dos testículos, já que compartilham a mesma base em latim, tetis. Os testículos se repetem quatro vezes, passando pelo teste de Valéry até parar nos belos testículos de Humboldt. As testemunhas que não são as traças ignoram esse dado assim como o que se passa nos quartos onde há estupro e, portanto, não há sexo ou onde há desejo e, portanto, não há estupro. Porque “as testemunhas todas mentem não dizem nada com nada e se consideram estupro como sexo é porque não fazem ideia como eu faço do que é uma bela trepada”.

10. Uma falta que Virginie Despentes sente após o trauma é a existências de livros que falem acerca desse tema, que enunciem esse acontecimento:

Nos primeiros anos após o estupro, uma triste surpresa: os livros não podiam fazer nada por mim (…) Prisão, doença, maus tratos, drogas, abandonos, deportações, todos os traumas possuem a sua literatura. Mas esse trauma crucial, fundamental, definição primeira de feminilidade, “essa coisa que pode ser considerada uma infração e que deverá ficar sem defesa”, esse trauma não fazia parte da literatura (DESPENTES, 2016, p.33–34).

11. Penso que o testemunho enquanto um procedimento recorrente na poesia contemporânea feita por mulheres é uma estratégia literária-política. O testemunho assume a forma de um corpo a corpo contra o silêncio. Ao escrever aquilo que testemunham, as poetas inscrevem a sobrevivência dentro do campo simbólico. Colocam em palavras saberes que sempre foram cochichados. Convocam diálogos, filiações, respostas. Expandem possibilidades dentro de um campo que (assim como todos os outros em nossa sociedade patriarcal) ainda precisa ser disputado. Como “uma mulher que muda a regra do jogo”, Adelaide Ivánova apresenta, em O Martelo, outras ferramentas para reivindicar nosso corpo, nossos nomes e histórias. Se nunca se sai de uma certa cama, ainda assim é possível habitar outras.

Se nunca se sai impune, nem por isso se perde o desejo. E se o silêncio é parte constitutiva de um sistema que se reergue diariamente em palavras, é na forma de um testemunho que a linguagem pode se transformar em levante.

*Texto originalmente publicado na Revista Odara.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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