Colagem por Lost In The Island (Kaylan Michel)

Oito poemas de Bianca Chioma

e quem pensa no peso que suporta as mãos das mulheres cor de madrugada?

Mulheres que Escrevem
5 min readNov 4, 2020

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todo dia algo tenta me matar e cai exausto
agonizando de joelhos
na minha frente

me acerta rente à vontade continuar e ao medo de parar
e eu olho
para o ser estirado

lembrando que o seu cansaço
não vai fazê-lo desistir de amanhã tentar me matar de novo de novo amanheço e o vejo
na altura do espelho
de quem aponta e ri do meu cabelo
no olhar de quem esconde a bolsa
de quem me despedaça feito louça
OUÇA
mulheres como eu
tem olheiras abaixo das linhas dos olhos
pressa na sola do sapato
algumas têm filhos nos braços
e todas têm o mundo nas costas
entortam
envergam
por fora,
reta
por dentro sempre quebra

e quem pensa no peso que suporta as mãos das mulheres cor de madrugada? a constelação que mora nos olhos das mulheres cor de madrugada
é a maior prova que são elas que não deixam o céu espatifar no chão

invento rituais para invocar o cheiro dela [tomo banho de flor e acendo o vela] o perfume não vem, mas a saudade esguelha me esmaga que nem o capital a demora pra chegar o carnaval tumultua mais do que o alvoroço de quem vem batendo ponto pra quem tem, me deixa pequena que igualzinho o aperto no trem

gota d’água:

o meu corpo atlântico
já levou tanto caldo da história
o mar é disjuntor da memória
eu sei que vim de lá
“a vingança vem do mar”
alguém me falou no ouvido
enquanto a água me batia no umbigo ancestrais se parecem comigo
mas me criaram só pra negar

eu morro de sede em frente ao mar peço uma gota d’água
me dá uma gota d’água
é só uma gota d’água

pra ver se dar pra saciar
a sede que tenho de casa
lá eu não vivi nada
mas mesmo assim a saudade vem me assombrar

muitas águas cabem nos meus olhos por isso me pesa o peito
faço da água leito
pro banzo comigo boiar

quantas braçadas eu tenho que dar pra voltar pra casa?

aqui só me cortam as asas
quantos oceanos me afastam de casa?
aqui só me cortam as asas
quantas braçadas eu tenho que dar pra voltar pra casa? aqui só me cortam as asas
quantos oceanos me afastam de casa?
aqui só me cortam as asas

“me vê
entorta a cara
torce o nariz
vira as costas
e por um triz,
o seu olho escorrega :você -quase- me olha

abaixa a cabeça
disfarça
dá de costas
mas dos poemas que eu escrevi com a língua na sua coxa, qual deles cê mais gosta?”

mesmo sendo composta de naufrágios
esse corpo d’água
tem concretude de asfalto
e só se cura
da secura da cidade
com água salgada de mar, batendo no meio do peito ela tem olhos de afunda e nunca finda
é infinita a maria vai com as ondas

[afrotopia — para Xan Ravelli]

eu acordei de um sonho onde meninas molhadas de melanina encontravam no espelho um conforto pra retina

onde era rotina achar uma igual em cada esquina onde o crespo fascinava e não havia quem não demorava no mergulhar de dedos que a crespura proporciona

eu acordei de um sonho onde meninas molhadas de melanina encontravam no espelho um conforto pra retina

as mulheres com tranças prendiam em cada fio a herança de parir futuros mais brandos de ser um só com os seus santos de deixar a dor de canto

eu acordei de um sonho onde meninas molhadas de melanina encontravam no espelho um conforto pra retina

preta, se é que me cabe um conselho: a sua boca não é grande demais para um batom vermelho a sua vida parece um trevo desses que brota só pra dar sorte sei que às vezes falta o chão e o norte é tanta notícia de morte, mas a gente já é doutorada em renascer

eu acordei de um sonho

onde meninas molhadas de melanina encontravam no espelho um conforto pra retina

em seus olhos tinham um traço delineado por nossas ancestrais aquelas tais que andam com espelho na mão e que nos lembram que é do reflexo que vem a salvação

eu acordei de um sonho onde meninas molhadas de melanina encontravam no espelho um conforto pra retina

as que vieram antes que sussurram no seu ouvido nesse instante o afrofuturo é agora, vê se não demora fecha os olhos e vem mergulhar comigo nesse sonho onde meninas molhadas de melanina enfim encontram no espelho um conforto pra retina

bianca chioma é escritora, arte-educadora, produtora cultural, slammster do “Slam do Pico” e um projeto de socióloga. autora do livro “alumbramento marginal”, lançado pela padê editoral (2018) e do zine “partideira, lançado pelo selo InMart (2019). escreve cada linha-feitiço com a fé de mandingueira que desenha um novo amanhã.

Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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