Outro nome para ficção — Chamar, reconhecer e renomear

um ensaio de Teresa Dantas

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
8 min readJul 21, 2020

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Meu nome me parecia uma palavra que pousava em mim como em uma aterrissagem forçada. Atender ao chamado, mesmo vindo pela voz doce da mamãe ou pelas corruptelas carinhosas de meus irmãos e primos, era um acordo temporário entre o nome chamado e como eu mesma me designava. Quando fui para a escola, já sabia escrever o meu nome e quase todo o abecedário. Riscar e colorir letras era uma das principais atividades domésticas para uma criança quieta e distraída de quase cinco anos.

Uma história que se conta muito em minha casa é que até meu segundo irmão nascer, as peças de decoração da mesinha de centro da sala permaneciam intactas. Eu não mexia, eu não incomodava, não chorava se não fosse por fome, sede ou dor. Ao contrário do garoto que nasceu em seguida, eu não quebrava nada. Nunca arrisquei perder ou danificar algo que não sentisse que fosse realmente meu. Aquelas letras que formavam o meu nome talvez não fossem assim tão minhas, embora fizesse parte da brincadeira encher e colorir páginas inteiras do nome.

E, por isso, foi um longo caminho até Teresa. O descompasso entre o ser chamada de e o atender por ficou mais ruidoso quando vi pela primeira vez meu nome impresso em uma página de jornal, nos meus primeiros passos como jornalista. Quando encontro hoje os versos de Nome do Autor, de Ana Martins Marques, a turbulência ganha contornos bem mais definidos. “Impresso/ como parece estranho/ o mesmo nome/ com que te chamam.” No início dos meus vinte anos, era difícil compreender o desencaixe e explicá-lo para alguém soava como uma reclamação imatura e vazia.

Foram muitas as tentativas de expressar algo que nem mesmo se definia para mim. Meu nome não era feio, nem anacrônico, talvez sofresse das invencionices da língua, influenciada por modismos dos anos 1980 e séries americanas. Meu nome era tendência e isso não me incomodava. Sentia que não me caía muito bem, porém me tornava parte de algo, me vinculava à narrativa de uma família.

Assim como a minha língua materna, meu nome de batismo era íntimo e seguro. Difícil de abdicar de um vínculo inquebrantável, difícil de me reconhecer em outro nome, já que não havia aderência nem mesmo àquele que era meu. Não sabia de qual nome eu queria ser chamada, não me estabelecia em outro nome, não tinha apelidos, e o pouso se tornava cada vez mais atribulado a cada assinatura de texto. O problema estava na autorização que eu não me dava para simplesmente escolher, para simplesmente escrever e assinar.

Na época, ainda não conhecia o poema da Adília Lopes que diz “Eu sou a luva/ e a mão/ Adília e eu/ quero coincidir/ comigo mesma”. Adília Lopes é o outro nome de Maria José da Silva Fidalgo de Oliveira, o pseudônimo literário da poeta portuguesa. Penso Adília como a confirmação de uma sacramento que completa uma formação, ou melhor, uma transformação operada na escrita, na poesia, na ficção. Ela mesma explicou em uma entrevista de 2001 que “Adília Lopes é um nome de crisma. Maria José é o nome de baptismo”. Nascida no seio de uma família católica e praticante, onde se estudava a doutrina, essa afirmação faz muito sentido para mim.

Assim também penso Teresa, o desejo de aderir amim mesma, a operação para tornar a aterrissagem pacífica, o ritual que reconhece o tornar-me a mulher que tem o meu nome, a consagraçãopara confirmar meu movimento de mudança com o tempo e a experiência da escrita.

Foi G.H, de Clarice Lispector, que me ajudou a pensar sobre a dificuldade de me reconhecer em um nome para assim assiná-lo. “O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É suficiente ver no couro de minhas valises as iniciais G.H., e eis-me.” Finalmente, eis-me era o meu desejo, porém estava me tornando cada vez mais a mulher que não tinha o meu nome. Acabei sendo um outro nome.

Antes dessa compreensão houve bastante teimosia calcada na insegurança de me afirmar escritora, de me desculpar pelo meu desejo. Insisti tanto que deveria me tornar a pessoa que tem o meu nome, o nome de batismo, que assinei este nome no meu livro de estreia O passado é lugar estrangeiro, publicado pela Editora Patuá em 2017. Era a promessa de apaziguar esse estranhamento e eis-me mesmo em pouso forçado, esperando que a repetição da assinatura fizesse desaparecer as lacunas daquele encaixe, esperando que uma gambiarra desse jeito. Obviamente, a questão continuava lá.

Minha escrita se mantinha sem ser batizada, usando um nome provisório. Meu nome assinado me parecia apenas uma passagem para um outro. A distância entre o meu nome e a escrita foi se alargando cada vez mais e precipitava em mim a questão do nome, da ficção da escrita, da escrita de ficção, do se fazer em um nome próprio, em um nome de mulher que escreve.

Muitas mulheres que escrevem assinaram outro nome. Não há nenhuma novidade nisso. Das irmãs Bronte a J. K. Rowling, a história da literatura está cheia de casos de mulheres que assinaram pseudônimos, pseudônimos masculinos ou preferiram iniciais para conseguir chegar a leitores, para ter seu trabalho levado a sério. O inglês George Eliot e o francês George Sand eram mulheres. Com nomes masculinos, ou que poderiam soar masculinos, ou com o sobrenome e influência de um paiou marido, tinham mais chances de alcançar o respeito do meio literário, entrar no cânone. O nome tem um papel a desempenhar e um nome de mulher poderia serum problema.

Um certo receio de não estar à altura do que a tradição masculina da literatura pudesse valorizar ainda permanece, no caso da assinatura escrita de uma mulher, como fantasma. Adrienne Rich reflete como esse peso pode causar problemas a uma escritora. “Cada ato de nomear tem sido, até agora, um prerrogativa masculina e como podemos começar a enxergar e nomear — e portanto, a viver — de uma nova maneira.”

Elena Ferrante, a escritora italiana que não mostra o rosto e usa um outro nome de mulher para publicar, faz um movimento interessante nesse sentido. “Minha experiência como narradora, tanto inédita quanto publicada, realizou-se por completo, depois dos vinte anos, na tentativa de contar com uma escrita adequada a meu sexo e sua diferença”. Se antes não pensava em escrever como Madame de La Fayette, Jane Austen ou as irmãs Bronte, mas como Flaubert, Tolstói, Dostoiévski e Hugo, tinha passado a enxergar, nomear e, portanto, viverde uma nova maneira.

Aqui não será o nome de mulher o problema, nem para Adília Lopes, nem para Elena Ferrante. Aqui, a questão do nome passa pela autorização de nomear e renomear-se e, como diz Adrienne Rich, de deixar de ser assombrada pela convenção de propriedade masculina e sufocar o medo internalizado de ser e de se dizer e, acrescento, de se chamar pelo nome que se escolhe caber.

Teresa Dantas nasceu também dessa tentativa de encontrar uma nova maneira de enxergar e nomear e escrever a vida. Um movimento sacramental feito crisma, que passa tanto pela minha relação com prerrogativas masculinas, quanto pela potência da ficção e a realização de um desejo.

Meu pai é o primeiro a reagir contrário à minha nova assinatura, é pelo menos o único que se manifesta. Desde quando exigiu que eu usasse o sobrenome paterno em minhas primeiras matérias jornalísticas, ele se apoia confortável na autoridade do nome do pai. Algo que para mim é hoje superado e apaziguado como nunca fora.Dessa vez, honrar meu pai não está ligado a obedecer a uma ordem, por respeito ou amor, mas de me autorizar por mim mesma na escrita, na ficção, na minha assinatura de autora.

Teresa Dantas também nasce com o fim do meu segundo casamento. Mudei para o Rio de Janeiro, comecei um mestrado em filosofia na UFRJ. Após cerca de 10 anos, oito deles vivendo em São Paulo, a vida ficou arejada o bastante para fazer cair a necessidade de chancela que existia na minha insistência míope em fazer com que meu então marido se interessasse por aquilo que eu escrevia. Meu primeiro livro foi dedicado a ele. O caminhão da mudança que trouxe meus cactos e meus livros atravessou uma ponte que desabou logo em seguida, assim como acontece em cada escolha. O resto da estrada estava completamente em aberto.

Para assinar Teresa, eu me apoio mais uma vez em Adília Lopes, que em um poema se afirma empresária de sucesso no mercado da poesia. Adília é como Chanel, uma marca. A poesia e a ficção aqui pensadas como a marca de vida do corpo que escreve. Para uma mulher, nomear-se e renomear-se requer o rompimento de certas amarras e algum amadurecimento do próprio desejo. Para fazer Teresa Dantas existir na gestão da minha ficção era preciso de certa maneira gestar e saber o que no meu corpo é meu e do outro, esse outro que é registro ancestral e, por isso, também patriarcal.

O simples fato de assinar um outro nome, algo antes impossível para o lugar que eu ocupava como filha, companheira e mulher, a literatura poderia reposicionar. Teresa é também marca, marca de uma transformação.

Deram-me um nome para me tornar, assinei um livro com esse nome na esperança de ser a mulher que tem o meu nome, mas eu desviei o rumo, mudei tantas vezes a rota. Cheguei a essa mulher e a tal mulher que tem o meu nome, não tem o nome que me deram. O meu nome que escreve é como de tantas que antes de mim assinaram outro nome, o seu próprio nome que escolheram. Um nome que não é a filha de alguém, que não é a esposa de alguém, que não é a companheira de alguém. Um nome só meu, um nome-ficção, dado por mim, para mim.

Eu sou Teresa Dantas, minha autorização para escrever, me escrever, me renomear.

Teresa Dantas é o outro nome da escritora, roteirista e jornalista Suelen Carvalho. Nascida em 1982, em Castanhal do Pará, é autora do romance O passado é lugar estrangeiro, Ed. Patuá, publicado em 2017. Tudo ali dentro era outra é seu segundo livro. Mora, atualmente, no Rio de Janeiro, onde está concluindo uma pesquisa de mestrado em Filosofia, na UFRJ

Esse ensaio foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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