Papéis de carta feministas (ou a nova poética feminina pelo Instagram)

Este texto foi originalmente publicado em Bianca não é branca

Bianca Gonçalves
Mulheres que Escrevem
4 min readNov 13, 2017

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Kelsey Oseid

Quando entrei na adolescência, herdei da minha tia uma pasta cheia de papéis de carta. Coisa estranha para minha época. Folheando a pasta, com o plástico amarelado pelos anos, soprando um leve cheiro de mofo a cada página virada, notava ali alguns motivos recorrentes: bichinhos fofos em posições e comportamentos humanos, singelos cachorrinhos (ou ursinhos, elefantinhos, gatinhos) andando de mãos dadas, trocando carinhos, quase sempre acompanhados pelo pôr do sol ou a luz do luar. Alguns deles estampavam frases de tom aconselhador, principalmente sobre questões amorosas. Não me recordo com todas as palavras os dizeres ornados na coleção da minha tia, mas o conteúdo hesitava entre o encorajamento aos dilemas inespecíficos da vida e a entrega dedicada e delicada à paixão (de um homem, claro).

Minha tia, inclusive, mantinha o hábito de reescrever tais frases nas contracapas de seus livros e cadernos. Como também fui herdeira de parte de sua biblioteca, lembro-me vagamente de alguns versinhos copiados. Um deles, inclusive, me surpreendeu: uma estrofe de um famoso poema de Cecília Meireles que eu, por extensão, — e fazendo jus ao papel de herdeira, — acabei também copiando, não em livros, mas na minha mente: “eu canto porque o instante existe/ e minha vida está completa/ não sou alegre e nem triste/ sou poeta”.

O que o exercício de copista da minha tia diz (assim como a prática “escolar” de trocas de papéis de carta das meninas dos anos 1980), é que, seja ela considerada boa ou má, corria-se ali, nos intervalos de aula, debaixo das carteiras, uma poética que participava do cotidiano daquelas meninas, que as inscreviam numa ética comportamental e também estética, mesmo que tal (po)ética (decoradas em tons rosa-roxo e paisagens ensolaradas) confirmava aquilo que praticamente todas as meninas da época eram educadas a fazer: gostar de menininhos, relacionar-se com eles, aceitar o que eles diziam e faziam, casar e ter filhos.

Não se trata de desprezar ou elogiar a tal (po)ética: afinal, é preciso historicizar o contexto. E mesmo que haja atualmente resquícios daquele tempo, muita coisa foi ressignificada. As meninas não colecionam mais papéis de carta, fato. Mas há algo daquela prática, de troca e deslumbramento, que se mantém num gesto muito presente no nosso tempo.

A imagem do papel de carta me veio justamente no momento em que me deparei, em sala de aula de um curso de extensão, com meninas de 14–17 anos interessadas em literatura, não porque viram Machado de Assis na escola ou porque leram um livro sensacional do José de Alencar na biblioteca, mas porque liam com muita frequência poetas de Instagram (ou “instapoets”), que, segundo elas, “diziam algo que fazia sentido a elas”.

Elas compartilhavam o gosto por uma poesia que geralmente não é considerada como tal pelos círculos beletrísticos, seja pelo caráter “individualista” deles, que não atingiria a tal “universalidade” requerida pela tradição lírica moderna (que, sabemos, é um critério bem duvidoso), seja pelo preconceito ao suporte virtual. As ansiosas dinâmicas da contemporaneidade recolocaram e restabeleceram a poesia nos espaços do cotidiano, reprojetando não apenas as poéticas, mas também os lugares que estas ocupam. De certa forma, elas são herdeiras do poema-minuto, do concretismo, da poesia marginal, da música popular e demais manifestações que tentaram romper com a Tradição e deram conta de forjar uma nova tradição — para falar, aqui, com Octavio Paz.

A questão feminina surge à baila na justaposição do papel de carta oitentista com os posts de Rupi Kaur, Nayyirah Waaheed e Ryane Leão. Há algo que liga estas duas pontas e, ainda, liga as três poetas: o tom aconselhador e autoafirmativo de um lado, e a presença feminista do outro. Como se a última relesse, em termos de resistência, a ética que movia uma existência abarrotada de símbolos mimados, dando lugar a outra, de crítica e de consciência política.

Minhas alunas compartilhavam umas com as outras pelo Facebook e Instagram os poemas daquelas três (sobretudo a última, brasileira, negra, poeta e professora que recentemente publicou livro) com o mesmo gosto que a minha tia trocava papéis de carta, com a diferença que podiam, agora, vislumbrar outras possibilidades, marcadas por raça, gênero e sexualidade, que outrora não se vendia nas bancas de jornais e nem nas papelarias.

Este texto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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Bianca Gonçalves
Mulheres que Escrevem

poeta, performer e tradutora. doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp. www.biancagoncalves.net