Pedra Quarta

Tradução da carta escrita por María Sánchez em 05/12/2019

Estela Rosa
Mulheres que Escrevem
3 min readMay 7, 2020

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Carleton Wiggins

É difícil se reconhecer na inação, na pausa, no silêncio. Passo por uma rajada de transformações, mudanças e outros ritmos que meu corpo ainda não consegue assimilar e arrasta. Não posso evitar de me sentir culpada por “perder tempo”, por não fazer nada, por não aproveitar as horas livres que tanto esperava. Custa romper com o que você carrega nas costas e começar a dizer que não, a ser consciente de que precisa parar, tornar possível outro ritmo, entender que não se pode ter tudo e que não é um problema. E, apesar de tudo, me conforta imaginar algum mecanismo interno, gosto de pensar que algumas células se adiantam às outras e obrigam todo o resto a pausa. Sorrio pensando que nos restam algumas células irmãs daquelas dos animais que hibernam. E que esta ideia que creio ser tão minha e com a que brinco de contar uma história é só uma imagem herdada. Penso muito nos e nas que me precederam. Nas imagens que construíram, nos caminhos que pisaram com suas alpargatas, nas portas, janelas, árvores e cercas que tocaram com suas mãos. Em tudo que tornaram possível, mas também no que ficou como tentativa e erro. No que bate lá dentro, algo que parece minúsculo e que não tem importância, mas surge como um sinal e nos avisa. Uma intuição inata? Uma semente que sempre está a ponto de germinar? Gosto de pensar no corpo, em seus avisos, nas coisas que beliscam a cada um de nós, mas são temas universais. Gosto de imaginar esses códigos em uma célula, pensar que compartilha membranas, mecanismos de ação e sinais químicos com as mesmas que fazem um cordeiro recém-nascido ficar de pé e buscar as tetas da mãe, que fazem emigrar as aves, ou essas tartarugas que acabam de nascer na areia de alguma praia, pequenininhas, recém-feitas, e que correm, correm até a orla do mar sem que ninguém diga como nem até aonde devem ir.

Dos dias de transumância* trago muito comigo: sensações cruzadas, veredas, canções, sinetas, gestos, marcas. Às vezes estou lendo ou escrevendo no computador e me vem de novo o cheiro da fogueira, essa candeia que fazíamos a cada tarde com os peões ao chegar no lugar em que passaríamos a noite e nessa insistência tanto do fogo de não se apagar apesar das noites de chuva sem parar, e de nós mesmos, que queríamos nos agarrar a ele e fazer parte do abrigo. Foi em torno do fogo onde surgiram as canções, os cuidados, as histórias que talvez em outro momento ou espaço não tivessem surgido. Ao redor das chamas e das cinzas nascia a cada noite um lugar de língua e de escuta comum que nos amparava a todos e que por mais que a chuva e o vento insistissem, não se pode apagar.

* Escolhi deixar esta palavra por ser um termo do ambiente rural. O termo significa o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante uma parte do ano. O termo associa-se geralmente a deslocações de gado ovino.

Agradeço à María Sánchez pela autorização da tradução e publicação desta carta. Para receber mais textos da escritora, inscreva-se aqui: https://tinyletter.com/m_

Você pode ouvir um pouco mais sobre esta carta no episódio #44 do Mulheres que Escrevem Podcast:

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Estela Rosa
Mulheres que Escrevem

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).