Ilustração por Cécile Dormeau.

Por que as feministas são tão bravas?

Ser mulher é carregar uma insígnia invisível de subgênero

Débora Nisenbaum
Mulheres que Escrevem
5 min readAug 7, 2017

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Recentemente, entrei no Facebook e vi uma amiga falando sobre um caso de tentativa de feminicídio. O cara tava puto porque a namorada engravidou, não queria abortar, ele estava de intercâmbio marcado e tentou arremessar a mulher na frente do ônibus. “Dói em mim, porque podia ter sido eu”, disse minha amiga, compartilhando a notícia.

Tem uma parada muito doida na vida de toda mulher que passa a se identificar como feminista (e geralmente é essa parada que faz você passar a se ver como feminista), que é quando você percebe que as abusadas, as violentadas, as agredidas, as estupradas, as assediadas, assassinadas, escrotizadas, todas elas poderiam ter sido você. Porque você é mulher. E estatisticamente é isso que acontece com mulheres.

Se você é mulher, você se fode na vida. E as outras mulheres se fodem igualzinho você. Têm oportunidades de emprego negadas, sofrem com maternidade compulsória, com cultura do estupro, com parceiros abusivos. Enfim, existe uma miríade de experiências que só são vividas em conjunto e tão intensamente por essa classe infeliz que conhecemos como mulheres. Há experiências específicas de alguns grupos de mulheres também, como mulheres negras, trans, mulheres gordas. Mas ser mulher é eternamente carregar uma insígnia invisível de subgênero.

Ilustração por Cécile Dormeau.

Se do lado de cá nós temos um monte de experiências repetidas e cotidianas, significa que do lado de lá existe um canavial de homem reproduzindo as mesmas atitudes tóxicas numa base diária. São muitos, muitos mesmo. Todo mundo teve um namorado abusivo, um tio que bate na esposa, um cara do trabalho que assedia colega, isso se não forem os três ao mesmo tempo. Ainda tô pra conhecer uma mulher que não tenha vivido de perto a violência de gênero.

Partindo desse ponto, a gente obviamente tenta chamar atenção pro assunto. Porque metade da população mundial está sendo diariamente desrespeitada, violentada, essencialmente sendo tratada como subespécie. Ei, cara, cantada de rua é uma merda. Ei, você não pode chegar passando a mão na mina desse jeito só porque é carnaval. Ei, você não pode controlar o que sua namorada veste. A gente quer explicar pros caras como eles podem fazer pra diminuir essa quantidade absurda de abusos, microagressões e violências nas nossas vidas, porque bom, meio que depende deles, como causadores imediatos disso tudo.

Gif maravilhoso por Cécile Dormeau.

Alguns simplesmente estão cagando porque né, “problema seu, ninguém mandou nascer mulher, meu privilégio é uma delícia e eu vou sentar nele bem gostosinho porque o mundo me ensinou que meu ego e meu conforto estão acima de tudo”. Não exatamente nessas palavras, costuma vir naquela roupagem de “e a louça, já lavou?”, mas pra bom entendedor serve.

Ainda assim, os que tentam ouvir o que a gente diz ou fingem que se importam, simplesmente não se enxergam nos agressores. Ou falham em associar suas condutas violentas com crimes hediondos como estupro ou feminicídio. Um homem acha absurda a ideia de uma mulher inocente sendo estuprada no meio da rua. Mas não acha que isso tem nada a ver com aquele dia que ele deu uns goró a mais praquela mina gostosa da faculdade pra ver se ela facilitava e, quando ela “fez charme”, ele deu uma forçada de barra.

Depois de tantas conversas com tantos homens de tantos backgrounds diferentes, identifiquei que eles criam uma separação gigantesca entre a consumação da violência de gênero e o processo que leva até ela. É até fácil condenar um cara que bateu na namorada enxergando esse fato isoladamente, mas quando esse cara é um amigo que bebeu umas a mais e ficou puto com a parceira, os homens rapidamente saem em defesa dele. Porque ali eles já não enxergam mais a estatística de violência doméstica crescendo. Eles enxergam um brother que cometeu um erro, um caso isolado. E obviamente, pra eles é extremamente difícil (senão impossível) empatizar com a mulher em questão.

Enquanto isso, do outro lado da história, mulheres vão se identificar com a essa garota agredida. E vão ficar putas, porque é a repetição de algo que já se passou com elas ou com alguma próxima. É mais uma menina apanhando, mais uma irmã, tia, colega, aluna. Algo contra o qual a gente luta todos os dias e mesmo assim continua se repetindo. Mais uma que provavelmente nem vai denunciar porque passar três quatro horas na Delegacia da Mulher sendo tratada de maneira questionável é humilhante demais.

Ilustração por Cécile Dormeau.

Só semana passada, fui assediada por um cara que insistiu várias vezes pra que eu beijasse ele; no dia seguinte, um cara numa festa puxou minha blusa “pra ver minha tatuagem” enquanto eu dançava; na manhã que seguiu, o cara sentado do meu lado no ônibus estava se masturbando. Para qualquer mulher, esses relatos são parte de um cotidiano de merda que é socialmente aceito porque o conforto dos homens importa mais do que a integridade física e moral das mulheres.

Quando expomos esses relatos e buscamos chamar atenção pra um problema que é endêmico, somos tratadas como exageradas. Loucas. Temos nossa conduta moral questionada. Por uma classe de pessoas que simplesmente não consegue conceber o tamanho da merda que comete. Enquanto as mulheres criam empatia entre elas, porque todas um dia já foram vítimas da mesma coisa, os homens ainda estão presos na velha ladainha de isolar os atos cometidos por seus congêneres como incidentes, e não tratá-los como parte da epidemia que são. “Ah, mas nem todo cara é assim”. É de um bundamolismo colossal.

Então, sim, nós feministas ficamos bravas, putas, possessas, pistolas, locas no jiraia de ter que lidar com esse tipo de raciocínio preguiçoso e covarde. São, sim, todos vocês. São teus amigos, teus parentes, teus colegas de trabalho, são vocês mesmos. Porque se acontece com todas nós todo santo dia, não tem como ser a mesma meia dúzia de filho da puta. Abram os olhos, façam um exercício de empatia. Que inferno, cacete.

Este texto faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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Débora Nisenbaum
Mulheres que Escrevem

Fotógrafa que escreve quando não cabe num frame. Dev em formação. Colaboradora na Ovelha www.ovelhamag.com