Andrea Stöckel

prosa rápida dolorosa de Madár

O que ele tem é medo, e falta de caráter de vez em quando

Mulheres que Escrevem
5 min readNov 18, 2022

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Duas vezes sobre ele

Um.

Prosa rápida dolorosa

Um dia me encontrei com ele no meu imaginar e estávamos os dois na varanda pequena do apartamento, e ele me disse que eu deveria ir embora, que eu deveria atravessar o oceano e esquecer nós dois, porque nunca existiu e não vai existir nós dois. Que eu deveria esquecê-lo, ele disse. E eu, alta de café e de certeza, respondi na língua dele, quase que beijando a língua dele, que eu poderia atravessar o oceano e ir, mas esquecer não. E que eu poderia atravessar o oceano e voltar, arrumar meu cabelo, pousar na cidade dele e mandar uma mensagem, uma segunda e uma terceira, e esperaria uma semana pela resposta, e nada me faria chegar do outro lado do oceano e esquecê-lo, ou estar aqui do lado dele do oceano e fingir que o esqueci. E naquela varanda pequena, naquele espaço tão tímido olhando os apartamentos da frente, ele me olharia sem prestar atenção neles e, feliz por ter ganhado, me deixaria sem resposta como que é de costume; e se eu pudesse beijar a boca dele saberia ele que seu mundo inteiro desabaria, deslocar-se-ia em um epicentro Hungria-América Latina, e todas suas certezas seriam desarmadas; e todas suas defesas seriam desarmadas; e a torre que construíra contra mim seria desarmada; e eu o desarmaria como quem tira a parte de cima devagar porque já não há mais pressa, e o resultado daquela guerra entre fronteiras seria ele por baixo e eu voando raso junto à ele, ouvindo algo em húngaro sem querer saber a tradução, assistindo junto ao movimento dos pássaros o sol batendo em seu peito e seu braço, voando alto sobre a doma bordô da cidade sem esperar qualquer resolução.

De vez em quando eu digo pra ele que sonhei com ele e ele gosta de saber. Gosta dos detalhes. E então ele me diz que faria tudo isso, tudo isso que escrevo, mas não atravessa a ponte. E ele sabe que o dia que ele atravessar a ponte, não tem volta. O que ele tem é medo, e falta de caráter de vez em quando. Nenhum dos dois me importa. Não me importo se ele vem ou se fica, ou se quando vier, ficaria. Feito pássaro cardinal voo perto da ponte verde da cidade, converso comigo sobre o rio passante, existo com ele ou sem ele, nada importa, isso não me importa. Escrevo porque ainda não aprendi a deixar a vontade que tenho dele acabar, e essa vontade é grande, é imensa. O dia que ele provar dessa vontade que eu tenho, ah, esse dia. Nesse dia quem vai precisar voar perto da ponte verde da cidade é ele, e quero só ver quão pássaro ele é de saber se entender consigo mesmo sobre o rio passante e sobre a vontade que nele crescerá imensa também. Nesse dia seremos eu e ele pássaros sobre o rio, voando alto, por cima, por baixo, guerra de fronteira antecipada no alto da doma bordô da cidade, por cima, por baixo, no alto; sem pressa nenhuma de acabar.

Dois.

Memória dos trópicos

Lembrei dele com a gravidade de quem sabe que está entrando pelo caminho errado, lembrei dele querendo não lembrar. Porque lembrar dele me lembra do outro lado da linha, e do outro lado da linha não há espaço para nós, nem para a minha história; e se não há espaço para a minha história, também não há lugar para mim. E se em São Paulo caminho e não em Budapeste, tentando esquecê-lo ou nele não pensar e ainda lembro, me dói dobrado e duas vezes por inteiro. Me dói porque lembro desse oceano e meio entre nós, esse feito de meias verdades e outras mentiras que criei para imaginar o nosso sol sendo o mesmo, com a luz dos trópicos sobre nós dois, nossa língua tocando a mesma luz e a mesma gramática, palavras inteiras, linhas por terminar, szerelem, meu amor. E o meu amor, essa gramática de fronteira, da estrutura da língua dele em que há sufixos e da minha em que há metáforas, essa nunca cruzou a ponte; nunca escreveu um poema sequer, uma música, uma parte, três terços de conto, talvez uma crônica, nada mesmo, sobre nós. E ele nunca me disse szerelem, meu amor, mesmo depois de ler todos os poemas que escrevi e alguns sobre ele; e eu nunca ouvi seus sufixos me chamando de szeret, amor, me dizendo szeretlek, meu amor, ou eu te amo, eu te amo, memória dos trópicos, algum sol sobre nós, gramática de fronteira, eu te amo, eu te amo, szeretlek, meu amor.

Madár

Natalia Fornari, ou Madár, saiu da periferia de Sampa para a Hungria e hoje escreve sobre gramáticas de fronteira em Berlim. Mãe da Gloria e pesquisadora de Estudos de Gênero e Mulheres pela Universidade de York, conduz uma vida (nada romântica) entre mundos e entre línguas com interesses literários sobre relacionamentos de fronteira, anticolonialidades, feminismo sul-caribenho, melancolia e migração. No instagram: @xnataliafornari, ou szabad madár (pássaro livre em Húngaro), língua de sufixos que traduz sua língua materna de metáforas, que é Brasileiro, e não Português.

Essas prosas foram publicadas na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só debater questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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