Quatro poemas de “A libertação de Laura” de Helena Zelic

mas é que sempre hão de chegar os domingos festivos

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem

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amor secreto

“Há muito imploro
ao Deus que guia a vida
que me devolva a pátria tão querida
e que eu reveja os pais e a irmã,
um dia em Aman.”
jamil mattar, meu bisavô

sempre hão de chegar os domingos festivos
daqui posso ouvir o som da campainha
minha avó encara mariana intrigada
pergunta seu nome como todo dia
maria e ana, a mãe, a avó de jesus
segura suas mãos tão orgulhosa
você é muito bonita, diz sem saber
de onde veio mariana e como
entrou na história
muito bonita, muito bonita
mariana então me olha, orgulhosa
mas não segura minhas mãos

sempre hão de chegar as noites dos domingos
minha avó retira os anos do aniversário
assopra velas e é feliz
quando os filhos fecham o portão
trancam o cadeado
todo filho a casa torna
e depois foge
este é o ciclo da vida
minha avó, feliz, agradece
a deus, e deus escuta
seus dedos firmes no piano
quando canta a canção
de laura habuki

laura habuki não existe
não a encontro nas esquinas
não sei transcrever os ásperos fonemas
laura habuki um mistério
tocado há oitenta anos
nas cordas escondidas do piano

mas é que sempre
hão de chegar os domingos festivos
minha avó canta cinco vezes seguidas
once i had a secret love
that lived within the heart of me
all too soon my secret love
became impatient to be free

pede aos jovens que a ajudem
a passar de uma língua à outra
uma vez tive um amor
secreto
bonita a canção, ela diz
e recomeça, impatient
to be free

nomes

i.
o nome salua significa
resignação
aquela que aceita
ou melhor
aquela que tudo aguenta
tenho dúvidas sobre a resignação
se faz mais forte
ou mais submissa
a nós
a humanidade

ii.
salua sempre me disse
o nome helena significa
tocha fogo paixão de todos os homens
daí cresci
e dei de amar as mulheres

poema em amã

eu não sei falar árabe
minha avó só me ensinou
palavras de baixo calão
qadib, hamar, explicava e ria
— agora você — brincava
e mandava puxar os erres
de dentro da garganta

o som ainda preso dentro de mim

bala terba significa sem educação
bala chinten significa sem calcinha
e a bala adams sabor tutti frutti ou miski
busco as palavras no tradutor
assim quem sabe me sinto em casa mas
as palavras parecem não existir

como confiar apenas na memória?

quem sabe um dia trombo com elas
como quando trombei com laura habuki
e nos amamos e flutuamos
contamos na mão o sal do mar morto
al-bahr al-mayyit
sem trocar palavra

eu não sei falar árabe

não tenho ideia
quais as paisagens da jordânia
um país recém-inventado
como são os países
corte fundo de terra
com quem jamil grafou tristezas

não saberia buscar o endereço
de seu vilarejo
caso aceitasse a jornada
caso ainda existissem
os mesmos lugares
cem anos, cem guerras depois

observo a bandeira do país
igual à palestina, somada
a uma estrela de sete pontas
nunca desenhei uma estrela
com tantas pontas, pudera
nunca tentei representar
as sete montanhas de aman
os sete primeiros versos do alcorão

só conheço, e por cima,
os sete pecados capitais
o poema de sete faces
os espelhos de sete anos
as sete vidas de um gato
minha avó levanta todos os dias
tropeça e cai todos os dias
nunca em pé

o que é o que é
cai em pé e corre deitado?
qual animal anda
pela manhã sobre quatro patas
pela tarde sobre duas patas
pela noite sobre três patas?

minha avó não tem
sete mas oito irmãos
helena, tuffik, loris, adib
fadua, feris, wadih
iracema
como a dos lábios de mel
esta é a mistura do brasil com
as arábias
talvez iracema seja um concílio
no exílio de jamil e zaquia

começo com o nome de deus, clemente, misericordioso
todos os louvores são para deus, o senhor de todos os mundos
clemente, misericordioso, soberano do dia do juízo
só a ti adoramos e só de ti imploramos ajuda
guia-nos à senda reta
à senda dos que agraciaste
não à dos abominados, nem à dos extraviados.

assim começa o alcorão.

eu nunca orei a deus
eu nunca nem vi deus em minha frente
não aprendi a falar as palavras
ordenadas por deus
enquanto isso, minha avó
deitada na cama reza
pai nosso que estás no céu
acabai com essa loucura
não sei o que está acontecendo
comigo

lady laura

laura, volte
laura, por favor
laura, já não posso
correr atrás de você
como os velhos tempos
estou fraca, laura, venha
me leve para casa, sim, laura
laura, se você for embora, saiba
saiba, laura, não tenho como
garantir que vou lembrar
do seu rosto, laura
sua voz, laura
seu nome
laura
eu
ainda
nem te
conheço
me espera

O lançamento do livro “A libertação de Laura” irá acontecer no dia 30–04–2021 no YouTube da Edições Macondo, clica aqui e salva a transmissão pra não perder!! A conversa será com a autora, Helena Zelic, nossa coordenadora de projetos, Taís Bravo, e a poeta Camila Assad.

Helena Zelic (1995, São Paulo)

é militante feminista e poeta, autora de Durante um terremoto e das plaquetes 3.255km e CAIXA PRETA. Seu novo livro, A libertação de Laura, está em pré-venda pelas Edições Macondo e você pode comprar clicando aqui, não esquece de usar o cupom MQE e garantir seu desconto.

Estes poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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