Quatro poemas de Andrea Pech

deixamos escorrer os antigos amores / no colo das novas amantes

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
4 min readAug 19, 2020

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Foto: Andrea Pech

Estamos na Sacadura Cabral, onde o litrão de Brahma custa dez reais. Sentadas com nossos copos americanos e infinitos assuntos, bebemos rápido, enrolamos um cigarro após o outro, o isqueiro é compartilhado. Eu olho em seus olhos, eles focados no movimento dos meus lábios, prendendo a atenção em cada palavra.

O registro do nosso primeiro encontro não é feito pelos celulares, esquecidos perdidos nas ecobags a essa altura da noite, mas por aquele artista de rua que tá sempre pelo Nanam desenhando as pessoas em bares com caneta bic no verso de flyers, mas naquele dia estava ali pela Gamboa, quem sabe queria novos ares. No desenho, nossas mãozinhas detalhadas aquecem o coração.

Sentimos muito frio naquela noite de inverno carioca, após às 23h somos a única mesa de plástico remanescente na rua, ainda assim você pede mais uma saideira litrão. Observo seus gestos, suas expressões, e me esforço para decifrar o que você diz enquanto Baco Exu do Blues ressoa na minha cabeça: cê tem uma cara de quem vai fuder minha vida.

Você disse que gosta dos pelos das minhas pernas. Gosta da parte detrás da minha coxa, mais peluda que a da frente. Outras haviam dito “eu aceito”, “não faz diferença” ou “não me incomodo”. Você é a primeira a dizer “acho lindo”. Eu falo que com meus quatro planetas em Leão não preciso da aprovação de ninguém pra me achar linda, mas mana, como é bom ter o corpo gostado.
Exploramos o centro da cidade de bar em bar, um mais sujo que o outro. Seguro sua mão no caminho até o metrô e andamos no escuro em silêncio. Lembro de como me emocionei quando você contou que a arte te ensinou que a vida não precisa ser literal, mesmo quando visual.
Eu te disse que, como minha amiga Brena, sempre sei dizer de cara quem eu posso amar um dia, até mesmo num ponto de ônibus. O que não te disse é que você era uma dessas pessoas.

Antes de te conhecer
surdez era metáfora
para desatenção
negligência
ou um desespero
descrito em poemas
como corpos debaixo d’água
que não conseguem se comunicar

Por não ser boa com figuras de linguagem
acreditei que nunca seria poeta
mas já que só escrevo sobre amor
confesso que amei
literalmente
sua incapacidade de ouvir

É estranho amar sua deficiência?
Ou o ato de estranhar que diminui
um traço de sua identidade?

Assim como seu sorriso
seu estilo e seu toque
Amei
seu olhar para os meus lábios
poder falar sem emitir som
aprender novos movimentos para minhas mãos
nossa língua (quase) secreta, altas putarias em vagões de metrô e fofocas sobre alguém do nosso lado
a necessidade de te encarar para me comunicar, outra dinâmica de atenção
os gifs sorridentes no whatsapp
suas expressões, facial e corporal
e sua capacidade de ler as minhas sem que eu precisasse falar
Amei nossa libras tátil inventada antes de dormir, sua mão na minha mão, minha mão no seu rosto

Não apaga a luz ainda, bebê, no escuro é difícil a gente se entender

um nome comum
em outro rosto
desestabiliza a fala
nas minhas veias
o judaísmo
insiste na memória
seu fantasma na rua acre
e nos corredores entre
obras de arte e objetos de arquivo
de uma cidade que destrói seus museus

lembranças guardadas do primogênito
não se repetem para o segundo filho
meus dentes de leite nunca foram
banhados com ouro

fragmentos de um corpo viram joias
nas mãos dela
as unhas pintadas com cores claras
na mesma paleta das telas
que não pinta mais
enquanto derrete e molda objetos
em tons de branco e cinza
nos tornamos estátuas
imóveis ou imobilizadas

deixamos escorrer os antigos amores
no colo das novas amantes

você sabia, juliana, que a composição química das lágrimas depende do motivo do choro?

Andrea Pech é artista e educadora, carioca nascida em 1990, lésbica contadora de histórias de amor. Trabalha principalmente com a linguagem da performance, transitando com um pensamento performativo entre corpos, escritas, sons, imagens e objetos. Participou de residências artísticas, integrou exposições coletivas e mostras de performance em espaços como Paço Imperial, A Mesa e Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Mestre em Artes pela UERJ, sua pesquisa se situa entre a performance e a escrita, elaborando uma construção sobre memórias. Atualmente é professora do ensino fundamental e educadora cultural na Casinha — ONG que assiste jovens LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social.

Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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