Arte por Stephen Towns.

Quatro poemas de Carolina Aleixo

você acha que o meu amor é/ mais uma forma de colonização?

Mulheres que Escrevem
4 min readSep 30, 2020

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quando atraco em terras firmes

primeiro era eu a colonizada
torcendo para que o homem branco
desembarcasse nas minhas terras
explorasse as minhas matas
encontrasse as minhas riquezas
torcendo para que o homem branco
travasse guerras intermináveis
com outros homens brancos
por mim

então o homem branco
atracou no meu porto
e com as suas mãos
explorou a minha mata
encontrou as minhas riquezas
e as utilizou a exaustão

explorada
desgastada
empobrecida
cansada

declarei a minha própria independência
e depois fui eu mesma para o mar
atraquei aqui
em terras firmes
agora luto contra a vontade
de segurar os seus dedos
e te ensinar exatamente como agir
quero te ensinar a existir
porque as suas manobras de sobrevivência
me escapam
você acha que o meu amor é
mais uma forma de colonização?

duas almas há séculos perambulam pelo rio de janeiro

suas pernas compridas caminham rápido
minhas pernas curtas — mas grossas
se cansam na tentativa
de acompanhar seus passos

as casas antigas
os botequins
passam rápido no fundo
eu não vejo nada
porque olho pros seus pés
olho pras suas coxas grossas — mas compridas
sei que se eu perder elas de vista
nunca mais te vejo
e aí, como é que vai ser?

você para de repente
eu não prevejo
bato com a cabeça na sua barriga
eu sou tão pequenininha
e por isso você ri
você me serve um copo de cerveja
a gente bebe encostado
num balcão empoeirado
você se abaixa e me beija

você sabe que
qualquer coisa dentro de mim se quebra
quando você me beija
as minhas pernas ficam moles
eu perco todo o meu
senso de urgência
relaxo
a corrida acabou

é aqui que a gente se encontra
bem nesse bar antigo
como duas almas há séculos
perambulando pelo rio de janeiro
e agora secas
por uma cerveja

mas você ri
e sem me avisar
retoma a caminhada

eu fico
com meu copo de cerveja
no balcão empoeirado
com a minha alma cansada
e minhas pernas inúteis
eu já perdi o senso de urgência

enquanto vejo você se afastar
descubro que você também é pequenininho
ganho um tamanho normal
descubro que quanto mais você se afasta
maior eu fico

as coisas parecem mais reais

barco

atravessei o mar em um barco destruído
não, não tava destruído
só não era um barco

um homem velho
de olhos sábios
e pele escura
me disse que entrasse no barco
que não era barco
ele me disse que precisavam de mim
o meu trabalho seria olhar pro céu
e refletir

então entrei
e não tinha barco
tinha eu
e mais tanta gente
conduzindo juntos um barco
que não era barco

a gente ia porque precisava
uma parte de nós se machucava
e o remédio era o mar
era o movimento

o meu trabalho era olhar pro céu
refletir
formular perguntas
e encontrar os próximos movimentos
era assim que o barco
que não era barco
encontrava os seus caminhos

demorei a entender que
não tinha barco
porque não precisava
o homem velho me chamou
pra olhar pro céu
e refletir
e encontrar os caminhos
porque eu sou o próprio mar
o próprio movimento

de nós fez-se o mundo

com nei lopes e berg silva

agradeço, cassul-buanga,
aos travesseiros
manufaturados por nossas mulheres
- os negros ventres de veludo -
por guardar todos os sonhos
de meninos como você, cassul
de meninos como meu pai
que ousou sonhar
um sonho tão bonito

e que depois
já não mais tão menino
me ensinou a sonhar
os meus sonhos tão bonitos

ele me contava, cassul,
de uma princesa-guerreira
de nome dandara
que tinha os olhos pretos
tão pretos quanto os meus

uma princesa-guerreira
que inventou um lugar de liberdade
inventou um lugar de vida
assim como é a nossa casa
onde vivemos, cassul. e cantamos um blues!
e na roda um samba
de roda
dançamos.
e onde agora nossos poemas
formam um grande rio
que nos leva de volta, cassul
aos nossos travesseiros
que nos lembram dos nossos sonhos tão bonitos
e assim não nos perdemos

viveremos nossos sonhos tão bonitos
porque zâmbi mandou. e está escrito.

Carolina Aleixo tem 26 anos e cresceu na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Transita entre cinema e literatura e educação, pesquisando imagens, realizando pequenos filmes, escrevendo poemas e pensando muito na vida.

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