Rupi Kaur e a poesia de agora

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readMar 14, 2017

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Se há uma certeza antiga é que a Terra não é plana e o tempo não nos envolve da mesma forma.

Agora mesmo é possível coexistir uma imensidão de verdades.

Você pode, por exemplo, entrar em uma livraria, em algum lugar entre a Zona Sul e o Centro do Rio de Janeiro, e ouvir, junto ao ruído permanente da Bossa Nova, um homem branco entre os 40 e 60 anos despejar uma perspectiva:

Porque antigamente não era assim. Agora é tudo internet. As crianças vivem nesses tablets, não abrem um livro. As livrarias vão acabar, deu no New York Times. A gente tem que ler a mídia lá de fora, né? Aqui é tudo comprado pelo governo. Tem que sair todo mundo. As pessoas falam da ditadura, mas naquela época não era assim. Eu lembro, aproveitava muito o Arpoador, não tinha essas merdas de arrastão, violência, tiroteio, todo mundo curtia tranquilo. Aproveitei muito, nossa, a juventude era outra… Mas o mundo mudou muito, né? Minha filha tá nesse Tinder. Eu já avisei que vai se ferrar com isso. Ninguém mais olha pro outro, troca uma ideia… Aí vem com esses livro de colorir pra desestressar. Mas não vão num museu, não tem cultura nenhuma. Vão acabar com a arte mesmo, né? Tá tudo perdido. É a internet…

A sorte é a polifonia do tempo.

Em algum lugar. Em diversas cidades. Em milhares de esquinas.

Emerge um gesto novo:

Um tuíte. Um post no tumblr. Uma exposição no Instagram. Um suspiro no Facebook. Um áudio de 4 minutos.

Um livro.

Mas de um 1 milhão de cópias.

.

Dá pra passar uma vida inteira indo à praia sem nunca ver o mar

mas às vezes entre o entretenimento desponta

e a gente se pergunta

como é que pode vir do meio do nada um risco

uma marolinha ou uma tsunami

ou uma porção de água suficiente

pra derrubar sem tirar a vida

e em algum lugar alguém descobre

um modo de dizer

que sim,

Rupi Kaur é uma poeta indiana de 24 anos que desde os 4 vive no Canadá e iniciou sua carreira na literatura através de redes sociais como o Instagram e o Tumblr. Em 2014, ela publicou independentemente seu primeiro livro, Milk and Honey, que chegou a entrar na listas de mais vendidos da New York Times. Neste mês, o livro finalmente chega ao Brasil título Outros jeitos de usar a boca, edição da editora Planeta e tradução da escritora e poeta Ana Guadalupe.

A poesia de Rupi Kaur aborda temas como amor próprio, relacionamentos, violência e liberdade. Seus poemas às vezes se assemelham a uma investigação de si mesma e das outras mulheres que atravessam sua vida. Ela expõe uma tentativa; a catarse que permeia seus versos são o caminho para uma cura.

Assim, se trata de uma escrita que desvia dos ideais impostos pela Literatura Tradicional, como as limitadas noções de racionalidade, neutralidade e do autor como um ser que transcende os limites materiais. Kaur ocupa uma posição antagônica a essa cultura. Ela aposta na vulnerabilidade, na confissão, nos instintos e em uma inteligência que passa necessariamente pelos nossos corpos.

Junto com Warsan Shire, Nayyirah Waheed e Key Ballah, Kaur impulsiona um novo movimento poético que rompe em suas formas e conteúdos com as estruturas brancas e eurocêntricas próprias ao cânone literário. Essas poetas estão fazendo uso das possibilidades contemporâneas, como as redes sociais e plataformas de autopublicação, para conquistar um espaço que que muito raramente é cedido às mulheres, especialmente as mulheres que não são brancas. Essa conquista vai muito além da questão de representatividade na literatura, ou seja, de garantir que o meio literário seja mais diverso. Pois elas não estão apenas ocupando esse espaço, estão transformando a arte — e consequentemente a nossa sociedade — ao afirmarem novas formas de se pensar e fazer literatura.

Kaur, Shire, Waheed, Ballah, entre outras, são mulheres que escrevem para mulheres. Seus poemas são cartas de amor, manifestos e listas de autoajuda. A busca por amor próprio tão presente nessas poesias vai além de uma questão individual quando essas autoras investigam e criam novas formas de enxergar quem elas são e quais são as histórias que formam suas vidas, atravessando as experiências de suas mães, avós, irmãs e indo ao encontro de suas ancestralidades. O amor próprio então é uma redescoberta histórica e uma afirmação política. A literatura de agora é feita dessa materialidade.

em Ipanema, a rotina se mantém

com as repetições precisas

alguém tenta eternizar

a paisagem já desgastada

uma bicicleta avança mais rápido

nem a Força Nacional é capaz de conter

entre lugares seguros

Vinicius de Moraes continua a girar

indiferente

as traças também avançam

só em um jogo o papel vence

as pedras

é preciso o mesmo movimento

infinitas vezes

para erodir um tiquinho

ela abre o livro

como dizem os jovens

sente

entre os dedos a origem das correntezas

Para ouvir o podcast que gravamos com Taís Bravo, clique aqui!

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