Seis poemas por Cecília Floresta
a sapatão que ao homem diz não
de poemas crus (Patuá, 2016)
ensaboa
o que me preocupa, carlos
é como o amor pode virar espuma
no canto da boca dos outros
idade da pedra
a mulher que caminha na pedra
carrega muito mais que peso
enfrenta desafios
cidades esquinas
asfaltos & chãos de terra batida
a mulher que caminha
sai à procura da comida
que os seios pros filhos seus
não pôde dar sem luta
caminha no silêncio da pedra
a mulher que desconfia & grita
sem nem conhecer o porquê
de tamanho silêncio
ou a qualidade robusta
que lhe saltam aos olhos
em dias ou não de chuva
a mulher que pela pedra caminha
não se lasca com qualquer parede:
avança vozeia & grita
pelo alimento necessário das crias
que ardem de fome à revelia
a mulher de pedra caminha
afronta protesta & uiva
tem pelos longos cabelos
desgrenhados poréns
valiosas dúvidas
& dívidas muitas dívidas
que jamais foram suas
de cunilíngua (à procura do papel)
nós outras
a sapatão que ao homem diz não
foi flagrada pelos holofotes
os mais curiosos perguntaram
como pode?
como pode mulher de bigode
ser assim tão forte
questionada a receita
certeira declarou:
como eu há várias outras
basta procurar entre as fileiras
ali na lotérica vejo duas
a sena ontem acumulou
nem o diabo pode
mas exu laroiê lhe carrega as oferendas
não nas costas
nos braços mesmo
pra ir bem cheirando no caminho
é assim desde pequena será?
será que entortou
será que se perdeu
será que em boca aberta
entra mesmo mosca?
a sapatão que ao homem diz não
respondeu:
como eu há várias outras
basta olhar
aquelas duas
a consequência do ato
gerou boatos na boca dos outros
pelos corredores frios
de paredes finas
ouviam-se sussurros:
“fulana dormiu com fulana”
ou
“ouvi dizer que pegaram
as duas peladas
dormindo na mesma cama”
Adrienne Rich {XE “Adrienne Rich”}
definiria a pecaminosidade
como “a lésbica em nós”
mas aos colegas do escritório
da avenida paulista, n. 57
não agradavam escritos
sobretudo o sexo das mulheres
menos ainda entre duas
de roncó (em andamento)
yangí
devo carregar pecados inimagináveis
ou ao menos foi o que disseram
todos aqueles votos contra a minha existência
embora já tenham me matado tantas vezes
que eu devo ter aprendido a ser Lázaro
mas ó:
com a licença de Jesus
que Exu é quem me guia
ewé
sol ferve cabeça forte
mato trança no pé
passo erra caminho
se Ossanha quiser
olho-de-pombo
cabeça de gente
assobia silêncio
quando ela passa
bebe cachaça
solta fumaça
na boca do mato
perde palavra
se a preta quiser
nas ideia do sinhô
fazer brotar guiné
e ela quer
Cecília Floresta é afrodescendente, escritora, candomblezeira & sapatão. nasceu na capital paulista numa dessas manhãs de dezembro, fazia sol e o ano era 1988. ganha a vida editando livros, pesquisa narrativas e poéticas ancestrais iorubás e seus desdobramentos na diáspora negra contemporânea, lesbianidades e literaturas insurgentes. poemas crus, seu primeiro livro, foi publicado pela editora Patuá em 2016.
Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só a debater questões da escrita, como a dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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