Ser negra. Lê-se negra.

Fabiana Pinto
Mulheres que Escrevem
4 min readJan 17, 2016

Ser mulher em nossa sociedade é uma luta diária, mas quando você é mulher e negra, essa luta é dobrada. Desde crianças somos bombardeadas pela mídia com modelos de beleza que não condizem com o que vemos no espelho, a pele clara, os cabelos longos e lisos, os traços finos. Desde muito cedo nós questionamos se o que somos é correto, afinal se não é o que vejo na TV, se não é o que narram nos livros, se não é o que reproduzem em forma de bonecas em lojas, não é isso que eu quero ser. Não é isso que quero ser. Se eu não me vejo, eu não devo ser boa. Não é isso que quero. Eu não quero ser negra. Que mulher negra nunca desejou ter a pele branca, ou ter nascido com o cabelo liso? Não por não gostar de si, não por se odiar, mas porque é isso que nos é ensinado, mesmo que nós não saibamos que estão nos ensinando. Nos ensinam a nos odiar, a querer ser outra pessoa, ter outra cor, cabelo, nariz, boca, olhos.

Durante essa busca por uma imagem que, por maiores que sejam nossos esforços, jamais será a nossa, nos submetemos a procedimentos estéticos, tratamentos de clareamento de pele (com a desculpa de ser apenas para espinhas, mas no fundo rezando para que aquilo nos torne mais claras), comprando maquiagens em tons diferentes da nossa pele ou pior, não tendo a opção de comprar maquiagem do nosso tom. A “cor de pele” não é negra, a “cor de pele” é branca, rosada, bege, clarinha. Somos forçadas a usar e nos contentar com produtos que não foram feitos para nós. Podemos até querer comprar da nossa cor mas, essa não é vendida. “Leva essa que fica melhor”, “É quase do seu tom”. Não, essa não é minha cor… Tentamos dizer e, quando nos damos conta estamos lá comprando aquele produto e desejando que nossa pele fosse de fato daquela cor. A cor clara. A cor boa.

Nos submetemos a alisamentos e relaxamentos capilares em busca do “cabelo perfeito”. Perfeito? Perfeitos são os cabelos com que nasci. Hoje eu sei, mas, por muito tempo não soube. Depois de realizar meu big chop ou, o grande corte pude perceber que de todos os procedimentos, preconceitos e negações que a mulher negra tem dentro da nossa sociedade, talvez o maior deles seja com o seu cabelo. Somos ensinadas que o cabelo de uma mulher é algo que remete a seu poder, “Sinta-se uma diva poderosa com os novos shampoos…”, “Você e seu cabelo mais forte…”. Então, se eu decidir cortar todo o cabelo eu serei fraca? Não, mas a sociedade nos faz sentir assim.

Vocês se lembram de propagandas assim? A 3 anos atrás talvez, alguma dessas propagandas eram com mulheres negras balançando seus cabelos? Sejamos francas durante essa reflexão, porque de imediato são imagens da Ivete Sangalo ou Grazi Massafera com seus cabelos lisos que me vem à mente, e naquela época isso doía, doía em todas nós. E por sentir essa dor, nós, mulheres negras nos sujeitávamos a horas no salão, horas com os olhos ardendo, o couro cabeludo ferido e o cabelo se quebrando aos poucos. Se quebrando, mas liso. Fraco, mas parecido com o do comercial. Infelizes, mas dentro do padrão.

Até o instante em que descobri que o considerado aceitável, se inseria em uma estrutura social, uma construção de beleza e gostos que, não foram construídos por afrodescendentes. Nós, negras e negros, crescemos e fomos moldados em uma estrutura eurocêntrica e embranquecedora. Mas não é impossível desfazer esse molde. Descobri que o verdadeiro molde era o que eu desejasse construir, o molde em que fui feita, um molde de cor negra, cabelo crespo e traços africanos.

Talvez, uma das melhores decisões da minha vida foi ter cortado meus cabelos, até então lisos, cortado eles em meio a choro, quase os raspando. Ainda que esse corte tenha sido feito dentro de um banheiro, sozinha e em meio a uma crise nervosa por me sentir feia comigo, meu cabelo e meu corpo, por não aguentar mais ser obrigada a fazer alisamentos, por não querer passar por qualquer procedimento de beleza novamente que, por mais que tentasse jamais me tornariam branca ou, o mais próximo disso. Apesar das circunstâncias, essa foi a melhor coisa que fiz por mim, em muito tempo. Poder sentir meus cachos de três centímetros, ver como meu cabelo realmente era, como eu era de verdade depois de tanto tempo foi uma das melhores sensações da minha vida e que, só eu poderia me proporcionar. A sensação de liberdade.

Hoje, sei que milhares de mulheres passaram e vem passando pelo mesmo processo que eu. Se redescobrindo, se reconhecendo, aceitando a si mesmas e aprendendo a se amar como são. Negras como são. Amando sua cor, seu cabelo, sua ancestralidade, sua identidade e aprendendo a ter força para lutar contra uma sociedade que insiste em nos embranquecer. Nós, mulheres negras nunca mais iremos mudar para fazer parte de algo, mudar quem somos, mudar como nascemos. Não. Nós vamos aprender a nos amar e assim contagiar umas as outras para que mudemos e, mudemos para melhor, mudemos para nós mesmas. Mas, se ainda assim o mundo não aceitar como somos, que unidas mudemos o mundo.

O ensaio acima foi originalmente publicado na newsletter Mulheres Que Escrevem, em 15 de Janeiro de 2016.

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Fabiana Pinto
Mulheres que Escrevem

Sanitarista em formação, escritora e feminista antirracista.