Talvez não fosse sobre cartas
De olhos espertos, observava os dedos da moça tocarem o envelope e, sutilmente, conduzirem ao ato de molhar com saliva o selo
Muitos anos antes, sem saber que se conheceriam, Jéssica e Mariana tiveram seus destinos conectados por aquilo que pode se chamar acaso. Nas televisões ligadas em meio mundo de casas mais ou menos diferentes das suas, entre tanta coisa realmente desinteressante, naquele instante, as duas assistiam a uma mesma moça que falava sobre cartas. Ou talvez não fosse sobre cartas.
Em meio a tanta palavra dita, palavra falada, quase cantada, Mariana se enchia de curiosidades sobre a imensa possibilidade de destinos e contradestinos existentes em cada uma das coisas postadas. Entrava em becos, atravessava ruas, avenidas, oceanos, em sua imaginação traçava mil planos para percorrer distâncias grandes ou pequenas. E se pudesse chegar a muitos destinos?
Na outra ponta, no momento exato, Jéssica não se atinha a coisa outra que não fossem os detalhes. De olhos espertos, observava os dedos da moça tocarem o envelope e, sutilmente, conduzirem ao ato de molhar com saliva o selo. Mas, que gosto tem um selo? Na sala de casa, diante de pergunta descabida feito aquela, responderam-lhe que não tinha gosto de nada. E a menina com a boca cheia de água.
Depois cresceram. Mas só um pouco. E foram construindo planos que até então seguiam como paralelas. Sem encontro. Uma, com vistas nas coisas grandes do mundo. A outra, envolta em questões cada vez mais pequenas. Os sonhos, sim, eram imensos, assim como eram imensos seus projetos de carreira, mesmo que quase sempre tropeçassem na falta de condições objetivas para que fossem realizados.
Jéssica se baseava na tradição histórica de termos sido, no mundo, o segundo país a emitir um selo, para acreditar que teria carreira promissora na Filatelia. Estudaria selos, entenderia sua história, seu conceito, colecionaria outros uns e descobriria segredos, enigmas impressos que jamais foram percebidos por qualquer observador comum. Sua estrada estava escrita. Parecia questão de tempo.
Mariana queria viajar por lugares inimagináveis percorrendo o caminho das encomendas. Desejava sair do bairro, da cidade, do país, quem sabe até do planeta. Da entrega de um bilhete no comércio da esquina ao envio de objetos a uma tripulação em missão espacial, as possibilidades eram infinitas. Atenta às relações de troca, visualizou carreira na Receita, no Comércio Exterior e na Diplomacia.
Não prosperaram, não prosperou. Pelo menos não como planejaram. Esbarraram em diversas dificuldades. Se esforçaram muito, é verdade. Mas o esforço só não bastava, não era suficiente. Então buscaram meios de atender às suas muitas necessidades sem ter de abrir mão de todo o sonho existente. Batalharam de forma paciente. Foram resistentes. Resilientes. Cada uma a seu modo, em seu lugar.
Outros anos mais tarde, o encontro enfim ocorreu. Atrás do balcão e sem clientes para atendimento, Mariana observava a chuva cair lá fora enquanto se perdia em pensamentos. Jéssica surgiu à frente. Solicitou acesso pela porta e num piscar se viu dentro da agência. Correios. Gostaria de fazer um envio. Na entrega do envelope, trocaram ansiedades. Especulavam o destino e o tipo de selo postado. Em silêncio.
Nova Iorque? Jéssica pensou ser pouco caso. Sim. A cidade fica no Maranhão. Dizem que quem nasce lá é chamado de nova-iorquense, diferente do nova-iorquino dos norte-americanos. Mariana achou engraçado. Depois, conferiu as informações de remetente que continham a razão social e o endereço do local onde Jéssica trabalhava. Comunicou valor, recebeu pagamento, emitiu comprovante.
Posso ver qual vai ser o selo? Mariana pensou ser desconfiança. Sim. É sobre os 100 anos de Violeta Parra. Dizem que faz parte de uma série comemorativa sobre as relações diplomáticas entre Brasil e Chile. Jéssica achou bonita a novidade. Depois, viu de perto cada detalhe do selo. A artista, o violão, uma palavra escrita em espanhol, a cor violeta. É bonito mesmo. Agradeceu e se despediu.
A chuva rápida daquela tarde não se repetiu no dia seguinte. O horário era o mesmo, mas o destino e o selo, assim como o clima, também foram outros. Estava quente. Não é que quando chove faça frio, mas é que fica menos quente, Jéssica comentou como quem tenta preencher o silêncio, enquanto Mariana anotava informações e produzia invenções sobre outro destino também desconhecido.
Mariana buscou um selo novo, como quem tenta fazer dos gestos agradecimentos. Conseguiu. Jéssica sorriu aliviada pelo fim daquela espera, e se não fosse a tecnologia adesiva dos novos tempos, teria molhado com saliva o selo só para poder saber que gosto tinha. Por fim, as duas se entreolharam sem jeito e por algum acaso lembraram-se da moça que falava sobre cartas. Ou talvez não fosse sobre cartas.
Jéssica saiu da agência com a atendente que escolhia selos colada ao pensamento. Enquanto Mariana ficou lá dentro pensando na secretária que lhe trazia destinos-novidades. Eram sentimentos. Passaram o resto daquele dia aguardando o seguinte e seu terceiro encontro. Nunca haviam produzido cartas, mas diante da falta de coragem em dizer com palavra falada, só lhes restava escrever.
Foi difícil no início. Foram folhas de papéis e uma porção de letras desperdiçadas. Por mais que tentassem, não conseguiam expressar a estranha sensação de, repentinamente, ter tido tudo virado. Jéssica pensava em mil coisas do mundo, enquanto Mariana se via perdida em detalhes. Passaram aquela noite em claro e somente quando amanheceu, sentiram-se preparadas.
Mas o encontro não aconteceu. Jéssica chegou à agência mais cedo e encontrou o local de portas fechadas. Achou ter confundido o horário de funcionamento e, tendo confirmado, concluiu que alguma coisa ali estava errada. Chegou mais perto. Os trabalhadores haviam fixado aviso de greve, reclamando a falta de segurança e a demissão de outros funcionários. E não seria breve.
Mariana estava entre os despedidos e chorou sem aviso prévio. E fez esforço para estar recomposta no momento em que Jéssica deveria aparecer, mas não apareceu porque tinha ido mais cedo. Arrasada pelo desencontro e pelo desemprego, Mariana passou tempos em casa, desnorteada. Não fosse isso, teria visto que Jéssica esteve em frente à agência em dias consecutivos esperando encontrá-la.
Outro tempo tendo passado, preferiram tirar da cabeça aquele plano de se comunicar com alguém mais ou menos estranho, de quem não se sabia quase nada. Nem mesmo o nome. Era a atendente, a secretária e o desconhecido que elas carregavam sobre selos e destinos. Era preciso traçar outros planos. Buscar novas coisas que lhes trouxesse movimento. E seguiram caminhos naquela cidade grande.
Agora, estavam sentadas num mesmo banco de praça. À sua frente, uma feira de frutas, flores, artesanatos e um encontro organizado pela moça que falava sobre cartas. Jéssica tinha ido para ver selos, Mariana, destinos. Encontraram-se quando não mais esperavam. Trocaram olhares, tocaram os dedos e, por fim, os lábios num beijo muito rápido, o gosto de um selo. Mas não era sobre cartas.
Talvez não fosse sobre cartas integra o livro Diversidade e Resistência: Coletânea Literária LGBT (Aliás Selo Editorial, 2018).
Este conto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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