Três poemas de Ana Beatriz Domingues
gosto porque a vida ali é honesta
íris
quero lamber os teus olhos
pra ver se alcanço a
transparência
do que você vê
jubarte
quando acordo
há sempre um buraco
no peito
fico um tempo
observando
vendo se dali sai
algum bicho
uma canção
e vou tapando
com os inventários todos
possíveis.
o tempo
que gasto
pra levantar
é a liturgia
do curativo,
passo os dias
com esse nó
no meio do peito
resvalando nos seios
cada vez mais íngremes.
do precipício
adormeço
sonho com peixes
polvos gigantes
uma baleia parece orquestrar
tsunamis.
seu balé sua força
não a enfrento.
olhar esse vão
aqui dentro
fazer dele
a última cerimônia
de submersão.
diariamente
admiro os casais
cruzando o parque
os pássaros defecando
nos vidros dos carros
pequenos borrões azuis
as tardes presas
neste prédio triste
de Niemeyer
as árvores lá fora
movendo seus cabelos
você que nunca chega
as obras de arte
fingindo fazer revoluções
e a peça que mais gosto
é apenas
um travesseiro
com um pedaço de madeira
deitado
uma coluna vertebral obsoleta
essa obra se chama
“father” y
me lembra um senhor no México
que me vendeu tamales
até ali eu tinha pressa
até ali as bruxas gritavam na madrugada
que Quetzalcoatl
era uma serpente!
entro na livraria do 2º andar
conto todos os livros da prateleira
gosto de ver a moça do caixa
constrangida
ao me ver falar
das lesbianidades impressas
num livro com mulheres nuas
gosto porque a vida ali é honesta
é um susto
não uma proposição
faço isso por resistência
à solidão de uma pedra
perdida nessa nau de homens
ainda todos brancos
a máquina de ponto cuspindo papéis
meus cabelos crescendo nas axilas
a taxonomia desse corpo
vale pouco menos
que vinte reais a hora
Ana Beatriz Domingues
Carioca desterrada, é artista-educadora e terapeuta holística. Publicou trabalhos em diversas revistas literárias e na coletânea “Que o dedo atravesse a cidade, Que o dedo perfure os matadouros”. “Atlântida”, seu primeiro livro, será lançado em 2019.
Para ouvir o podcast que gravamos com Ana Beatriz Domingues, clique aqui!
Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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