Três poemas de “Fluorescentes” de Catarina Costa
o espaço do amor sendo o espaço do prato
Pai alheio a Beuys
Ao explicar o amor
para uma lebre morta
peguei sua carcaça
cuidadosamente pela barriga
assim eu pegava
meu pai pela barriga
e por excesso comparava
sua pança com a minha
de criança reminiscente do jantar
sem conseguir captar a imagem
não por inapetência de grão
só de linguagem
refém da mesa sem assimilar
o espaço do amor sendo
o espaço do prato
marrom e transparente
marcador social manifesto
em quase todas casas do bairro
o prato fundo no qual nada
completava o vazio estreito do arroz
que meu pai suplementava
cuidadosamente de saliva
ao me explicar o amor
como se eu fosse
a tão sonhada
lebre morta sobre a mesa
Vão
Primeiro almejei sugar com canudo
o real
seu furo
na intenção de capturar
o frágil derramado
nos dedos desnudos
assim imagens surtam
à revelia de mim:
criança morta
mulher na cama
com pouca roupa
surge o real em fuga
descendo as escadas
invadindo as cavernas
esguicha na veia
frincha nos seios
o real retraído
fístula
eu nunca tenho escrito
trapaceio para entornar
líquido como um filho
o real não veio
aborto um espelho
Estrela congênita
para Daniel Castanheira
Eu criança típica
ressabiada do escuro
já me antecipava da noite
guardando o sol na gaveta
meus adultos diziam de tudo: impossível.
ignoravam o anúncio do meu feito
voltavam sua atenção ao homem santo
minha meia favorita amontoada
com a mais narcísica das estrelas
era meu único segredo
e por estreita ironia aos fins de semana
meu pai sumia
me deixando aqui.
simulando minha mãe no papel
com o semblante congênito
de um rabisco no escuro.
Catarina Costa
Nasceu no Rio de Janeiro em 1996. Estuda Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fluorescentes é seu primeiro livro e você pode comprá-lo aqui: Fluorescentes — Editora 7Letras
Estes poemas foram gentilmente cedidos pela autora e publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita de corpos dissidentes, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!
Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter