Fragmento da ilustração Dança dos esqueletos por Fernando de La Rocque

Três poemas de “Fluorescentes” de Catarina Costa

o espaço do amor sendo o espaço do prato

Mulheres que Escrevem
2 min readNov 11, 2022

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Pai alheio a Beuys

Ao explicar o amor
para uma lebre morta
peguei sua carcaça
cuidadosamente pela barriga
assim eu pegava
meu pai pela barriga
e por excesso comparava
sua pança com a minha
de criança reminiscente do jantar
sem conseguir captar a imagem
não por inapetência de grão
só de linguagem
refém da mesa sem assimilar
o espaço do amor sendo
o espaço do prato
marrom e transparente
marcador social manifesto
em quase todas casas do bairro
o prato fundo no qual nada
completava o vazio estreito do arroz
que meu pai suplementava
cuidadosamente de saliva
ao me explicar o amor
como se eu fosse
a tão sonhada
lebre morta sobre a mesa

Vão

Primeiro almejei sugar com canudo
o real
seu furo

na intenção de capturar
o frágil derramado
nos dedos desnudos

assim imagens surtam
à revelia de mim:

criança morta
mulher na cama
com pouca roupa

surge o real em fuga
descendo as escadas
invadindo as cavernas

esguicha na veia
frincha nos seios
o real retraído
fístula

eu nunca tenho escrito
trapaceio para entornar
líquido como um filho
o real não veio

aborto um espelho

Estrela congênita

para Daniel Castanheira

Eu criança típica
ressabiada do escuro
já me antecipava da noite
guardando o sol na gaveta
meus adultos diziam de tudo: impossível.
ignoravam o anúncio do meu feito
voltavam sua atenção ao homem santo
minha meia favorita amontoada
com a mais narcísica das estrelas
era meu único segredo
e por estreita ironia aos fins de semana
meu pai sumia
me deixando aqui.
simulando minha mãe no papel
com o semblante congênito
de um rabisco no escuro.

Catarina Costa

Nasceu no Rio de Janeiro em 1996. Estuda Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fluorescentes é seu primeiro livro e você pode comprá-lo aqui: Fluorescentes — Editora 7Letras

Estes poemas foram gentilmente cedidos pela autora e publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita de corpos dissidentes, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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