Três poemas de Leíner Hoki
viver para esperar a vingança das plantas
Cortada em duas/cortar as unhas
poema em diálogo com Estela Rosa
Mesmo depois
de grande
crescida enorme
entre as pernas
pelos nos braços ainda
conservo
as unhas rentes aos dedos
De unhas curtíssimas
fico abismada
com a dimensão das coisas
— a largura do vão entre suas pernas
Eu olho minha mão sendo esmagada
contra sua boceta
o dedo do meio engolido
e depois regurgitado
penso no nome dos dedos
penso na minha rotina de unhas
mantê-las limpas e sem quinas
fechar as cortinas
lavar os lençóis úmidos
Da janela
encaro o abismo
como quem encara de volta
e penso que estar abismada
é quase o mesmo que dizer que te amo
enquanto lambo seu rosto
ou deito de leve
a orelha na sua coxa
e fico reparando você
se dissolver
Diferente do que pensam:
abismo é uma mulher
certa que atravessa
e é atravessada
Rosa
A única coisa
que me tira
o chiclete grudado
na sola
do sapato
é estudar a Rosa Luxemburgo
Marx
Alexandra Kollontai
os revolucionários e revolucionárias antigos
o mundo
fodido deles
que era fodido
como o meu
é fodido
e a Rosa escreveu a pergunta
Reforma social ou
Revolução
?
?
???
?
responde
que as duas estão imbricadas
as reformas fazem sentido
dentro
de um contexto
de uma visada
revolucionária
E eu leio balançando a cabeça sim
sim
SIM SIM
yes
yes
Não é uma teoria
o pensamento de Rosa Luxemburgo
não é uma teoria
no sentido de teoria
como um conjunto coerente
metodicamente articulado
de conceitos e teses
mas um ideário
construído na luta política
e muitas vezes sujeito
à tensões &
contradições
ou
no mínimo
à tensões &
ambiguidades
A única coisa que descola o chiclete da sola do meu sapato é assistir uma aula
sobre Rosa Luxemburgo
ler em voz alta
a historiadora que estuda mulheres
revolucionárias
as feministas antigas
Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente
escreveu Rosa Luxemburgo
E eu leio balançando a cabeça sim
sim
SIM SIM
Yes Yes
É Frigga Haug que diz que se aprenda
com Rosa Luxemburgo
como estudar os acontecimentos mundiais
que se aprenda como Rosa Luxemburgo os relata
com que métodos
decompõe os eventos
como liga as doutrinas com as ideias
comuns da população
e assim
como ela encoraja a pensar criticamente
com a própria cabeça
com a própria cabeça
SIM SIM
YES YES
consciência
organização
iniciativa
antes que a barbárie triunfe
derrubar toda a situação
na qual há quem seja degradado
subjugado
abandonado
desprezível
E eu leio balançando a cabeça sim
sim
SIM SIM
Yes yes
O que me ajuda a olhar de frente
o chiclete grudado na sola do sapato
de quem morre
de tiro
de fome
de quem compra uma corda ou se enforca
com o cinto
do uniforme ou
morre de trabalhar
morre de uniforme
os afogado no lixo líquido da mineradora
os corpos destroçados da Vale
mais uma vez
Identificou-se
controlou-se
protocolou-se
preencheram-se longas folhas de papel
sempre de cabeça erguida
mantendo-se perante a agonia dos outros
uma atitude tão corajosa
e imperturbável
quanto a dos heróis antigos
perante a própria
morte
os carbonizados no Flamengo
crianças, sim, meninos
mas aquilo foi
descaso com o trabalhador
a criança que jogava futebol
trabalhava
pro Flamengo
isso tem que ser dito
força de trabalho
degradada
abandonada
subjugada
desprezível
no Brasil estamos assim
reformar a previdência
morrer de trabalhar
agora
ou mais tarde
pra quem tem sorte
No Brasil estamos assim
SIM SIM
YES YES
Caroço
poema em diálogo com Estela Rosa,
pensando na tese de Melissa Rocha
Aprendi
que é
incontornável
que renasçam as folhas
rebeldia espontânea
das sementes de abóbora que germinam
nos vasinhos de terra sombreados
na janela gradeada de apartamento
natureza ingovernável
(um pedaço de cebola roxa brotou dentro da minha geladeira, num potinho esquecido no
fundo)
Carcará
pega mata e come
Carcará
mais coragem do que o homem
Carcará
planta sem nome
diria minha mãe
é tudo mato
e o mato
trata
de engolir
suas cicatrizes
o fogo que lambe a casca
da árvore
saliva ardida
seca
viver para esperar
a vingança das plantas
Leíner Hoki é mato-grossense e vive em Belo Horizonte. É escritora e artista visual. Também é mestre em artes pela UFMG, com a dissertação “Tríbades, safistas, sapatonas do mundo, uni-vos!: investigações sobre a poética das lesbianidades”, que está disponível online. Como se pode perceber, além de sapatão, ela é comunista.
Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram |Twitter