Arte por Joana Choumali

Três poemas de Sílvia Barros

Há alguns anos. / Algo diferente está acontecendo dentro de mim.

Mulheres que Escrevem
3 min readSep 16, 2020

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Poema datado

não tenho mais filtros de fotos de perfil. que contemplem minha indignação. meu protesto de sofá (de banco de ônibus, de cama antes de dormir).preciso dizer que apoio a seleção feminina de futebol.que choro pelo Sudão.que Renan (Rafael, Preta, Babyi) deve ser solto.que a universidade precisa de verba.não tem mais bandeira e faixa nas fotos de capa.pra mostrar meu orgulho lésbico.minha luta pela educação.meu grito de vidas negras importam.o eco de ele não.faltam filtros de beleza nas fotos.pra replicar minha beleza natural.mascarar minha feiúra.me tornar aceitável na rede social.tento enfiar minha luta nas dimensões da tela.inventar uma comunidade alternativa via web.em que todos falem o meu idioma.me entendam.e concordem.

Distraída

Às vezes, deitada no sofá
Vendo um filme distraída
Mexendo no celular ao mesmo tempo
Eu lembro que tem alguma coisa
Diferente acontecendo
Tomo um pequeno susto
Tomo consciência do caos,
Meu coração dá um pulo, acalma.
Me dou conta de que essa cena se repete
Há alguns anos.
Algo diferente está acontecendo dentro de mim.

Linhas

As linhas nas minhas coxas
Delimitam lugares apertados para ficar
Os dias longuíssimos não acabam enquanto não estou exausta
O corpo pesa quilíssimos.
Tudo é responsabilidade
desde a retirada da poeira do chão
até as frutas que estão na estação
do alimento e da água do cão
da areia dos gatos
da poupança e dos gastos
do amor que cola ainda os humanos.

Quantas bandeiras a empunhar
todas ao mesmo tempo
como uma pequena equilibrista de pratos
que corre de um lado ao outro
impedindo que os movimentos rotatórios parem
segurando com os dedos de pinça uma ou duas varetinhas,
olhando para o alto com os pés já preparados para correr
e fazer nova rodada de giros e impulsos
na obrigação de deixar nenhum cair.

A cada dia mais um a sentar sobre os ombros
acostumados a carregar o mundo.
De lá se vê melhor,
lá em cima corre um vento mais fresco.
É sobre esses nossos ombros
Que fica mais fácil comandar um mundo
De concreto e asfalto.

Cura

Se eu me curar de mim
Te chamo
E te digo
Como não fazer.

Se eu me curar de mim
Assim completamente
Te chamo e te peço que me resgate
Desse cativeiro
Que é estar para sempre sã.

Sílvia Barros

Sou escritora desde que aprendi a escrever e autora desde que aprendi a imaginar. Em 2019 publiquei O belo trágico na literatura brasileira contemporânea, livro fruto da pesquisa de doutorado e participo de diversas antologias literárias, entre elas os dois últimos volumes de Cadernos Negros, Contos para depois do ódio e Negras Crônicas. Sou também professora e carrego para essa profissão a luta por uma educação antirracista

Esses poemas foram publicados na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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