Três poemas de “Uma nota de mil austrais encontrada em um livro de Carl Sagan” de Fernanda Mugica

Com tradução de Anelise Freitas e Marcela Batista

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
5 min readOct 25, 2022

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i.

que a tartaruga esteve comigo
toda a vida / eu quis te dizer isso
na tarde do deslize
mas o mato cresceu sobre os trilhos e
o reboco da sua casa
caiu bem antes
de que eu pudesse sequer
articular a frase / depois a segui
nos diálogos imaginários
havia mudado de nome
murmurava inglês minha tristeza
era talvez a mesma / na verdade
algo nos bagunçou
não cheguei a dizer
a tartaruga esteve comigo
toda a vida / disse isso em outro ritmo
como as pedras que
constituem outra dimensão
se olhadas com paciência
durante dias meses anos
às vezes dizem algo mas
agora sou uma zumbi
olho as coisas com sensualidade
retrospectiva não descarto voltar à vida
porque não deixei a vida
por motivos banais
agora durmo vestida
como uma vagabunda ou
como uma guerreira
medieval e fico na metade
da escada desta casa semiterminada
não me surpreende: a morte não é para um zumbi
um motivo banal

v. nem subestimar a beleza da coca-cola

você sente que quase não pode desejar?
hoje, ao menos
nada poderia realmente te interessar?
a única coisa que te conecta consigo é sair bem nas fotos?
alguma vez se perguntou
qual é a diferença entre algumas pessoas
e outras?
alguém te disse ‘vibe’
algumas pessoas têm un plus de vibe
sim, mas houve um pouco disso que
nos devastou

a única diferença
entre algumas pessoas
e outras / bom
a única diferença entre você
e eu
como dizer? é que
és como uma pepsi obstinada
tu nunca serás a coca-cola!

isso verdadeiramente não importa mas
o que é que importa
me dá medo que de tanto nos olharmos de fora
e registrar cada momento
se desenvolva uma nova consciência
coletiva e alheia
na qual somente existamos

de fora e lá fora
como o planeta terra
nessas fotos tiradas de muito longe
no universo
uma nota de mil austrais encontrada em um livro de carl sagan
na verdade já estamos mortos
mas parece que brilhamos
como essas estrelas que deixaram de existir há milhares de anos
não sabemos muito bem o que há lá dentro
mas em um lá dentro minúsculo
não sabemos por que
certas células se proliferam
de uma maneira que não podemos controlar
prestamos atenção ao grande
e ao que vai ocorrer em milhões de anos
mas não entendemos nada do que está acontecendo aqui
se estamos nos extinguindo
e esse é o motivo de nossa angústia
ou estivemos mal todo o dia
porque fazia calor
e não havíamos nos dado conta

ix. o núcleo duro

te incomodam minhas panturrilhas
você diz isso é o que você tem de pior
está bem
uma vez alguém disse que o pior de você é sua mãe
nunca pude me sobrepor muito
agora talvez o pior seja você
ou certa maneira de ficar calada
quando colidem seus perfis
e não há um que seja verdadeiro
às vezes necessito pronunciar mentalmente a palavra puta não como uma interjeição ou uma queixa
mas como um sentimento uma série de vidas em que me sinto puta
e isso não tem algo especificamente mau
menos ainda tem a ver com ser mulher
ainda que algumas mulheres me deixem tão tensa
e não possa suportar a admiração ou o afeto

pobrezinho tudo o que brilha deve se sentir tão só

como esse desejo que pedi no meu aniversário
tão pouco transparente
estávamos em um píer e a onda passou por cima de tudo
mas não nos levou / rimos ensopadas / e não teve a ver
com a gravidade
ou com as marés
só que soubemos onde estava o mar
você está se comportando muito bem é o mais doloroso
que me disseram sempre
mas você segue sem saber o que os outros pensam de nós
com certeza pensam merda
e é estranho que não a ponham para funcionar o tempo todo
que não fique constante muito mais evidência

a linguagem se abre
uma praia com corpos despidos que não se desejam

“Uma nota de mil austrais encontrada em um livro de Carl Sagan” de Fernanda Mugica, com tradução de Anelise Freitas e Marcela Batista e prefácio de Luciana di Leone, foi publicado recentemente pelo coletivo editoral Capiranhas do Parahybuna na coleção América Invertida. O livro está à venda no site do coletivo e você pode comprar aqui: Capiranhas do Parahybuna — Uma nota de mil austrais encontrada em um livro de Carl Sagan (minestore.com.br)

Fernanda Mugica

é licenciada em Letras pela Universidade Nacional de Mar del Plata (UNMdP) e bolsista de doutorado (CONICET) com um projeto de pesquisa sobre literatura digital e processos de subjetivação/dessubjetivação. Publicou Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan (Editora Municipal de Rosário, 2018; Liliputienses, 2021), Soñé (Matrerita, 2021), El núcleo duro (Goles Rosas, 2015) e Alberta (Honesta, 2014). Participou de diversas antologias, como Archipiélagos (UNLP, 2018), Van llegando (Mansalva, 2017) e Las olas y el viento (Letra Sudaca, 2015). Em 2017, obteve uma menção honrosa no Primeiro Concurso Nacional de Poesia de Rosário. Em 2020, ganhou o primeiro prêmio no Concurso de Ensaios Críticos de Arte Argentina e Latino-americana, organizado pela Fundação PROA e pela Associação Argentina de Críticos de Arte.

Estes poemas foram gentilmente cedidos pela editora e publicados na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita de corpos dissidentes, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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