Três poemas de Lubi Prates
desde que cheguei um cão me segue
ser mulher é uma bênção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma bênção.
para este país
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha mala pesa tanto.
condição: imigrante
1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
esse cão, eu apelidei de
imigração.
2.
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão selvagem
esqueça aquela ideia
infantil aquela lembrança
infantil
de sua mão afagando um cão
de sua mão afagando
seu próprio cão
ficou em outro país
ironicamente, porque a raiva lá
não é controlada
aqui, tampouco:
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão
: selvagem.
Lubi Prates nasceu em 86, em São Paulo. Graduada em Psicologia e especializando-se em Psicoterapia Reichiana. Tem publicado o livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012, republicado pela Patuá, 2016) e triz (Patuá, 2016) e algumas participações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais. Edita a revista literária Parênteses, é tradutora e dedica-se, principalmente, a ações que combatem a invisibilidade da mulher e da negritude no meio literário.