um amor generoso

Não houve um dia em que não pensei em formas de sermos ainda mais generosas com nós mesmas

Dara Bandeira
Mulheres que Escrevem
3 min readJul 16, 2018

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Dos meus afetos densos, que são poucos, mas ainda o são, você é o que mais me esmero em dissolver. Você é — ainda — o que eu penso na estrutura, no peso, na forma que se deu em mim sem que conseguisse fazer nada para prevenir, impedir. Sem anúncios ou frio na barriga, quando vi, você já era. E fiz o melhor que pude para não ser o contrário de mim. Eu fiz o possível para dividir o meu corpo e as minhas formas com o seu e as suas. Que sorte a minha. A nossa, não sei. Acima das vozes e da confusão que nos cercava, olhar nos seus olhos estabilizava meu corpo.

Há dias em que meia palavra.

Com você, fiz uns planos, na minha cabeça, de como seria minha vida se eu não precisasse ir embora em algum momento. Antecipei as crises, mas, muito antes disso, listei mentalmente todas as coisas que seriam prazerosas se você ali estivesse. Listei os filmes e os livros, as músicas e os incensos. Os bares e os compromissos. Estava tudo ali, esquematizado como em uma equação perfeita, com direito a prova real.

Tentava te dizer que o amor é bom, mesmo que nem sempre dê certo. Eu não tinha muitas garantias, nem sabia se conseguiria ser tão íntegra quanto fui outras vezes. Mas estava ali com você, todo o tempo. Não houve um dia em que não pensei em formas de sermos ainda mais generosas com nós mesmas. E não houve um dia — depois de tudo — em que eu não tenha me perguntado porque nem sempre a gente consegue ser tão generosa quanto deveria. Juntas, assim, bem de perto, você soube que em mim não há nada santo nem imaculado. Pelo contrário.

Vi tudo acontecendo. Vi você como nunca antes, vi minhas dúvidas, sua mão querendo me conduzir a alguma dança em que eu não acompanhava o passo. Vi a sua paciência, elegância, ciúme e distração. Vi sua fera e seu sexo. Vi as garrafas vazias e os cinzeiros cheios. A casa iluminada com a luz que vinha da janela me induzia a te acordar, te convidar pra ver a vida lá fora. Aquela luz me lembrava de pausar o momento e não deixar que você se esvaísse entre os meus dedos e medos. Mas eram muitos. Eu não queria que você fosse, mas também não achei justo te pedir para ficar. Não achei justo um alarde, um pedido.

Ouvi no rádio dia desses que cada ser tem sonhos à sua maneira. Eu tinha sonhos e tinha medo. Tinha medo de você não voltar. Tinha medo de fechar os olhos. Eu tinha sonho de ser feliz, mas sem pesos. Queria amar sem temer. E não sabia o que você buscava. Eu queria te dizer que, antes de você, as coisas fugiram um pouco do meu controle e isso me soava como uma derrota. Queria escrever, não sei, que tudo que eu fazia era porque sentia muito. Por mim e por você. Mas a sua proposta não me bastava.

Eu não podia ser aquilo, não naquele tempo. No ronco da cidade, com as luzes da noite, com os corpos em movimento, com meus olhos bem abertos e meu coração nas mãos, fui saindo. Fui saindo como quem deixa uma festa sem ser vista. Saí antes que não fosse possível ser de novo, de algum jeito, com você. Sem deixar nenhum rastro, nenhuma carta, nenhum muito obrigada. Eu fui à procura de algum retiro ou refúgio que não encontraria em você, em nenhuma outra. Fui em busca de alguma coisa que me garantisse que eu pararia de fugir de amores tão generosos como o seu. Como o nosso.

Esse conto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa não só debater questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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