Uma aula infinita: As meninas, de Lygia Fagundes Telles

Reconstruindo o Cânone

Laura Cohen Rabelo
Mulheres que Escrevem
6 min readOct 31, 2017

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As meninas, de Lygia Fagundes Telles, foi uma das melhores leituras que fiz nesse ano de 2017, em que me pus a ler muitas autoras que autores. Tinha lido dela apenas uns contos aqui e ali, mas nunca tinha recebido muita propaganda da autora, nem na escola (onde muitos a leram) nem na faculdade de letras (onde ela parece ser preterida!). Por mais que insistamos, a literatura feita por mulheres acaba sendo magnetizada por apenas um ícone — Clarice Lispector, no momento. Em um curso que fiz em uma sala com uma maioria masculina, Clarice era, na maior parte das vezes, a única mulher citada, e toda vez que eu ou uma colega tentávamos colocar outras autoras na roda, acho que sem perceber, a maioria dos colegas não dava muita importância. Mas isso é assunto para outro texto.

Como escritora e professora em ateliês e oficinas de escrita, gosto de pensar que cada livro pode conter dentro de si uma oficina. Olhando atentamente por trás do tecido da escrita de cada texto, podemos enxergar quais procedimentos foram usados na escrita, e podemos, assim, imitar certos recursos ao nosso gosto, adquirindo um saber-fazer. Isso funciona até no caso dos livros que não nos atraem: eles mostram a nós o que não queremos que a nossa escrita seja.

Capa clássica do livro lançado originalmente pela Livraria José Olympio Editora em 1973.

Resumindo: As meninas, publicado em 1973, conta a história de três moças que devem ter por volta de vinte anos, Lorena, Ana Clara e Lia, que ficam à toa durante uma greve da faculdade, morando cada uma em um quarto de um pensionato de freiras. Duas coisas me pareceram as mais interessantes neste livro-oficina: a narração e as personagens. Pode parecer estranho a quem não leu, mas é um livro narrado simultaneamente em primeira e terceira pessoa. Não, não são capítulos que alternam primeira e terceira pessoa, mas uma voz narrativa em terceira pessoa absorve a narração das próprias personagens, que falam cada uma com sua voz. Assim, as narrativas mudam de enfoque: um capítulo do ponto de vista de Lorena, outro de Ana Clara, outro de Lia, alguns capítulos narrados por Lorena e Lia alternadamente. O mais impressionante é que é raro se perder, porque a voz de cada uma dessas personagens é tão única que sabemos nas primeiras palavras do parágrafo quem está narrando ou sobre quem se narra. Assim, a polifonia é posta em ação de forma radical.

Sobre as personagens, Lygia Fagundes Telles n’O Estado de São Paulo em 1995: “As personagens são como vampiros, cravam os caninos na nossa jugular e quando amanhece, voltam aos seus sepulcros até eu anoiteça de novo. O fim do livro seria a pedra que ponho sobre esses visitantes. Definitivamente? Não. Um dia, de repete, com outro nome e outras feições e em outro tempo volta mascarada a mesma personagem, elas gostam da vida. Como nós”. O que nos atrai no livro é isso: as meninas são reais, são humanas, estão vivíssimas e são ora como nós, ora diferentes de nós. É como se conseguíssemos dialogar com elas, entrar eu sua cabeça e também sermos repelidas por seus discursos. Aqui, cada personagem tem seu próprio léxico, lida com certos objetos, expõe os pensamentos, performa vícios de linguagem, possui um vocabulário próprio de gestos.

Falando separadamente de cada uma das personagens:

Lorena, a virgem, está apaixonada por um homem casado e quase nunca sai do próprio quarto — não sai do lugar e mesmo assim vai longe, planejando um futuro, visitando o passado, nos presentes que recebe de seu irmão diplomata de países distantes. Lorena, para mim, é a mais amorosa de todas. Parece estar sempre cuidando e provendo — e é também a mais engraçada, a mais propensa à galhofa, inventando apelidos (Lião, Ana Turva), faz gestos estapafúrdios, se exercitando com sua malha preta deitada de costas no tapete do quarto. Seus capítulos são os mais leves, apesar da narrativa trágica da morte de um dos seus irmãos.

Ana Clara, por sua vez, belíssima e drogada na cama de um namorado, pega coisas emprestado das amigas e não devolve, é levada (ou vai?) por uma deriva furiosa de memórias, ações não planejadas e mentiras. Quando Ana Clara fala, em qualquer parte de sua biografia, sua voz não se faz ouvir por quem está presente na cena com ela. Para mim isso é o mais desesperador a respeito dessa personagem: ela diz e diz, e nós, leitoras de fora, somos as únicas a escutar, enquanto quem contracena com ela não parece receber sua voz.

Lia, por fim, faz pesquisas a respeito da masturbação feminina e outros temas interessantes, escreve e rasga o que escreve, quer ser escritora. É militante de esquerda, vinda da Bahia, filha de um alemão e uma baiana, termina as frases com um cacoete de linguagem, um “entende?” que consigo imaginar na minha mente com uma ruga entre as sobrancelhas. Ela fala uma das minhas frases preferidas do livro inteiro, uma frase que consegue fazer surgir em nossos olhos o ser humano que ela é: “Em sinal de protesto devíamos todos simplesmente morrer”. De alguma forma, foi a personagem com a qual mais me identifiquei — fui capaz de sentir até mesmo sua ansiedade, e é a personagem que mais consegue sair da concha e dialogar com outras pessoas: dois colegas de militância, a Madre Alix e a trágica mãe de Lorena.

Capa da atual edição publicada pela Companhia das Letras.

Os homens, no livro, aparecem pouco e não temos tanto acesso a eles. São ora fruto de amor ou de pena, ora atores de ameaças e, mesmo assim, não são mal representados: são apenas coadjuvantes da história. Para mim, alguns dos pontos altos do livro são os diálogos que as meninas travam com as freiras e, mais que todos, o diálogo entre Lia e a Madre Alix, no capítulo 6. Madre Alix diz, sobre elas, em diálogo com Lia: “Vocês me parecem tão sem mistério, tão descobertas, chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei, que sei pouquíssima coisa. Quase nada — exclamou e abriu as mãos em espanto. — O que sei, afinal? Que é da esquerda militante e que perdeu o ano por faltas? Que tem um namorado preso, que está escrevendo um romance e que está pensando numa viagem que não tenho ideia para onde seja? Que sei eu sobre Lorena? Que gosta de latim, que ouve música o dia inteiro e que está esperando o telefonema de um namorado que não telefona? Ana Clara, aí está. Ana Clara. Como me procura e faz confissões, eu podia ficar com a impressão de que sei tudo a respeito dela. Mas sei mesmo? Como vou separar a realidade da invenção”. Podemos imaginar cada palavra dita em voz alta, podemos nos colocar no lugar de Madre Alix que, como nós, tenta entender quem são as três.

Um clássico, segundo Calvino, é aquele livro que segue dizendo coisas a cada vez que é lido. E também um livro que não é lido, mas relido, pois tanto se diz dele que conhecemos as histórias de cor. Li As meninas pela primeira vez sem ouvir falar muito dele e isso é uma falta — sinto que eu deveria ter ouvido falar dele antes, milhões de vezes, clássico infinito que é, livro que nos atrai e que nos repele, ambos gestos violentos, para dentro e para fora dele. Comecei a ler esse livro junto da minha amiga & colega professora no Estratégias Narrativas, a Júlia Arantes, então acredito que alguma parte dos meus comentários aqui são resultado de conversas que tive com ela. Depois que terminou de ler, Júlia me disse uma coisa linda: “eu coloquei o livro na estante, e cada vez que eu olhava para ele lá, ele crescia mais e mais dentro de mim”.

Para ouvir o podcast que gravamos com Laura Cohen, clique aqui!

Este texto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem em parceria com o projeto Estratégias Narrativas. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link para conhecer nossa iniciativa!

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Laura Cohen Rabelo
Mulheres que Escrevem

Escritora, coordenadora do projeto Estratégias narrativas e editora do Selo Leme. Autora dos livros "História da água", "Ainda" e " Canção sem Palavras".